Representantes do governo Maduro e da oposição venezuelana em negociações em Barbados — Foto: AFP
Um dia após um acordo histórico entre oposição venezuelana e o governo de Nicolás Maduro, que estabeleceu para o segundo semestre do ano que vem a realização de eleições presidenciais, o governo dos Estados Unidos suspendeu por seis meses as sanções ao petróleo, gás e ouro, impostas em 2019. Em contrapartida, Maduro concordou com a libertação de quatro presos políticos, entre eles o ex-deputado venezuelano Juan Requesens e o jornalista Roland Carreño, assessor do líder político Juan Guaidó.
Na terça, chavismo e a oposição venezuelana concordaram em preparar o caminho para as eleições presidenciais, que devem acontecer com observadores internacionais, incluindo a União Europeia. O acordo parcial, assinado durante as negociações em Barbados, no entanto, não deixou claro se políticos inabilitados, como a líder da oposição María Corina Machado, poderão participar do pleito.
David Smilde, especialista em Venezuela na Universidade de Tulane, em Nova Orleans, reconhece a grande importância do acordo, amplo e abrangente, mas atenta para a falta de detalhes, "o que deixa bastante espaço para manobras políticas".
— Como qualquer negociação, este é um processo. Os documentos são a ponta do iceberg daquilo de que está sendo conversado. Ou seja, as negociações são mais profundas e detalhadas, e o que se torna público é o que foi acordado. O resto ainda está sendo trabalhado — afirma ao GLOBO.
Os EUA celebraram o acordo e, nesta quinta, ao anunciar em comunicado a suspensão das sanções, o secretário de Estado americano, Antony Blinken, disse que espera o começo da libertação de "todos os cidadãos americanos e presos políticos venezuelanos detidos injustamente" no país. Ele insistiu, no entanto, na necessidade de revogação das inabilitações políticas, um ponto que ainda está em debate.
Horas depois, Gerardo Blyde, líder da delegação opositora na mesa de diálogo, publicou na rede social X uma foto do jornalista Roland Carreño, próximo a Guaidó. Ele foi detido em 2020, sob a acusação de de ser "operador financeiro de planos de conspiração e terroristas" contra o governo de Maduro.
— Estou um pouco atordoado porque, depois de três anos de tanta espera, de tanta angústia, que a liberdade chegue neste momento em particular me enche de muita esperança de que a liberdade da Venezuela também chegará — disse Carreño ao sair da prisão de 'El Helicoide', sede do serviço de inteligência, em Caracas.
Os outros liberados na quarta-feira são: o ex-deputado venezuelano Juan Requesens, condenado pela acusação de tentativa de magnicídio contra o presidente Nicolás Maduro; Marco Garcés Carapaica, estudante universitário detido em 2020 por estar no mesmo veículo de um ex-oficial da Marinha dos EUA; Mariana Barreto, presa por protestar em 2019 contra irregularidades no fornecimento de gasolina no estado de Trujillo; e Eurinel Rincón, que era secretária no ministério da Defesa e foi acusada de traição à pátria e vazamento de informações depois de aparecer em uma foto ao lado de um político da oposição.
Até 10 de outubro, a Venezuela tinha 273 presos políticos, segundo a ONG Foro Penal.
— O mais importante agora é avançar, agradecer a todos os que tornaram isto possível... Não tenho palavras — declarou Requesens do lado de fora de sua casa, em Caracas, onde cumpria prisão domiciliar. — Agora a única coisa que quero fazer, além de ver vocês, é visitar meus pais.
Requesens, que integrou o Parlamento eleito em 2015 — e que tinha maioria opositora —, foi condenado por "conspiração" após as explosões de dois drones nas proximidades de um palanque onde Maduro presidia um evento com militares, em 4 de agosto de 2018, em Caracas. As autoridades acusaram o então presidente colombiano, Juan Manuel Santos, de planejar o ataque em colaboração com Estados Unidos e Peru.
"Finalmente a liberdade plena para meu amigo e companheiro", celebrou o líder opositor Henrique Capriles no X, antigo Twitter. "Finalmente a justiça foi feita".
Participação da oposição
Apesar dos avanços selados na terça-feira, tanto Capriles quanto a opositora María Corina Machado, que lidera com folga as pesquisas das primárias opositoras do próximo domingo estão até agora impedidos de concorrer. E o penúltimo ponto do acordo assinado em Barbados não deixa claro se eles poderão estar ou não na disputa do ano que vem.
O texto estabelece que será promovida a “autorização a todos os candidatos presidenciais e partidos políticos, desde que cumpram os requisitos estabelecidos na lei". Com isso, mantém em aberto a possibilidade de que os atuais vetos judiciais sejam utilizados para impedir a inscrição dos candidatos. Ao comentar o tema, na terça-feira, o chefe da delegação chavista, Jorge Rodríguez, deu a entender que as portas seguem fechadas aos dois:
— Se você recebeu uma inabilitação administrativa, não poderá ser candidato — disse, sem citar nominalmente nenhum político.
Ainda assim, o anúncio do acordo a poucos dias das primárias, pode ser interpretado como um sinal positivo de Maduro, acredita Geoff Ramsey, analista político do Atlantic Council.
— A questão das inabilitações segue sendo um debate vivo, mas o acordo cria um processo pelo qual os candidatos podem apelar das decisões judiciais. Não é uma certeza, mas há agora um espaço para isso. Se não fosse pelo acordo, certamente não aconteceriam primárias no domingo — explica ao GLOBO. — Não é uma solução mágica, nem a rendição total de Maduro, mas vejo o acordo como uma conquista concreta. Smilde, no entanto, é bem mais cético sobre a participação da María Corina e Capriles no pleito.
— É improvável que o governo suspenda a inabilitação de María Corina Machado. Os custos para o governo de entregar o poder a ela são quase infinitos e, por isso, prefere assumir os custos moderados das críticas que receberão ao deixá-la de fora. A urgência e a raiva com que Maduro vem negando a discussão sobre o levantamento da sua inabilitação devem ser vistas como uma garantia à sua coligação de que não se exporá ao perigo de uma força de oposição radical — acredita o especialista da Universidade de Tulane. — Já a revogação da autorização a Capriles é possível, mas tampouco é provável. Embora tenha um discurso muito mais moderado, o chavismo guarda lembranças e ressentimentos dos momentos em que Capriles negou a legitimidade de Maduro.
Na quarta-feira, María Corina, a "dama de ferro", que ficou conhecida por liderar a oposição mais linha-dura contra o então presidente Hugo Chávez, rejeitou o acordo. Em nota, reiterou que "não participou das negociações e desconhece seu alcance preciso".
"O texto divulgado não dá certeza aos venezuelanos, pois não especifica as ações e prazos específicos que abrem o caminho para 2024. No passado, o regime de Maduro assinou acordos que viola repetidamente", afirma o documento. "Aos venezuelanos ratifico meu compromisso de continuar unindo o país em um grande projeto comum. No domingo, 22 de outubro, nós, venezuelanos, selaremos o acordo final: aquele que decide o povo", conclui a nota.
Nascida em Caracas, em uma família conservadora e católica fervorosa, a política lidera com folga as pesquisas para as primárias, desbancando Capriles. Seus atos reúnem agora centenas de apoiadores das classes populares, inclusive nos redutos chavistas, longe da capital. Já o político e ex-candidato presidencial, que representa uma ala mais moderada da oposição, comemorou nesta quinta-feira a libertação dos cinco presos como "passos na busca pelo fim da perseguição na Venezuela e pela justiça e plena democracia".
Papel do Brasil
Ao lado da Colômbia, o Brasil teve um papel central no acordo — em Barbados, o país foi representado pelo assessor para assuntos internacionais de Lula, Celso Amorim. Após declarações polêmicas em maio, quando Lula recebeu Maduro em Brasília e chamou e "narrativas" as acusações de que a Venezuela não vive sob um regime democrático, o governo brasileiro agora tem o que celebrar.
"Em um momento em que diferenças se aprofundam em outras partes do mundo, o entendimento entre as forças políticas venezuelanas mostra que o diálogo é capaz de trazer resultados efetivos", comemorou o Planalto em nota, na terça.
Um dia antes do anúncio, Lula conversou com o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro. Na conversa, trataram das eleições venezuelanas e do fim das sanções impostas pelos Estados Unidos a Caracas, mas também discutiram propostas para a retomada do pagamento da dívida bilateral da Venezuela com o Brasil, que chega a R$ 5,69 bilhões.
— O Brasil está jogando um papel muito ativo na busca de uma solução democrática na Venezuela. Ao lado da Colômbia, pode e deve exercer uma liderança no monitoramento e implementação dos pontos acordados — afirma Ramsey.
As discussões entre o governo Maduro e a Plataforma Unitária começaram em agosto de 2021 e desde então foram interrompidas duas vezes, a última em novembro de 2022, depois de a delegação de Maduro ter condicionado o diálogo ao desembolso de US$ 3 bilhões de fundos venezuelanos congelados nos EUA.