03/01/2024 às 08h09min - Atualizada em 03/01/2024 às 08h09min

OPINIÃO O conflito Venezuela-Guiana por Essequibo e o imperialismo

- Por: João Batista Damasceno/Doutor em Ciência Política
Na divisão do mundo entre as potências no século XIX, a França inventou o termo "América Latina", pretendendo estender sua influência sobre os povos de língua latina. Os EUA, em 1823, já haviam proclamado o lema de James Monroe "América para os Americanos". Em 1814, o Reino Unido "comprou", da Holanda, a Guiana, que passou a ser inglesa.

Mas o pacto não definia a fronteira oeste do território. Os britânicos designaram, em 1840, o explorador Robert Schomburgk para determinar o limite e este definiu a fronteira da Guiana Inglesa, incorporando território que não era possuído pelos "vendedores".

A pilhagem incorporou quase 80 mil quilômetros quadrados da Venezuela, área equivalente a duas vezes à do Estado do Rio de Janeiro. A Venezuela, na época de sua independência, estabelecera que sua fronteira se estendia até o rio Essequibo. Reclamando dois terços da colônia britânica, em 1841, o governo venezuelano denunciou a incursão britânica e solicitou ajuda aos EUA.

Em 1850, a Inglaterra e a Venezuela ajustaram que a área não seria ocupada até arbitragem. O presidente Cleveland apoiou a Venezuela. Em 1895, o Congresso dos Estados Unidos propôs a criação de uma comissão para estudar os limites territoriais.

O Reino Unido se ocupava de outros conflitos pelo mundo, especialmente na África do Sul, e aceitou a mediação dos EUA. Em 1897, EUA, representando a Venezuela, e o Reino Unido firmaram um tratado em Washington para submeter a controvérsia à arbitragem internacional. Um árbitro russo foi incluído na comissão. O resultado saiu em 1899 a favor do Reino Unido, estabelecendo a "Linha Schomburgk" como fronteira. A decisão é conhecida hoje como "Laudo Arbitral de Paris".

A mediação mostrou a força dos Estados Unidos na América Latina, a supremacia da Doutrina Monroe e foi um ponto de ajuste nas relações entre Inglaterra e EUA sobre a zona de influência que caberia àquele. Os EUA cuidaram dos próprios interesses, desprezando completamente os interesses dos venezuelanos.

A Venezuela, embora insatisfeita, não contestou o resultado. Mas na década de 1950 do século XX, ficou provado o conluio entre os delegados britânicos e o juiz russo no tribunal em Paris, cujo voto foi decisivo contra a Venezuela. Assim, em 1962, ante as revelações trazidas à luz, a Venezuela denunciou o acordo celebrado e declarou nula e sem efeito a decisão arbitral e voltou a reivindicar o território de Essequibo perante a Organização das Nações Unidas (ONU).

Em 1966, pelo Acordo de Genebra, foi firmado um Tratado entre Reino Unido e Venezuela pelo qual ficou reconhecida a legitimidade da reivindicação venezuelana sobre a Guiana Essequiba. A Guiana Inglesa, hoje Guiana, fez parte do Acordo e se tornou independente meses depois, ainda em 1966. Tal acordo está registrado na Secretaria Geral da ONU.

Não se discutiu a autoridade do governo da Guiana sobre a área, mas se estabeleceu salva-guarda dos direitos de soberania venezuelana sobre a zona. Pelo Acordo de Genebra, a Venezuela reconhece como nulo o Laudo Arbitral de Paris de 1899 e a Guiana reconheceu a reivindicação e a inconformidade venezuelana, sem que tal reconhecimento significasse imediata invalidade daquela decisão.

No Acordo, estabeleceu-se a criação de uma Comissão Mista de Limites que, num prazo de quatro anos, decidiria o problema limítrofe. Mas, vencido este prazo, foi subscrito em 1970 o Protocolo de Porto Espanha, entre Guiana e Venezuela, pelo qual se "congelou", por 12 anos, parte do Acordo de Genebra. Em 1982, a Venezuela decidiu retomar a validade das deliberações do Acordo de Genebra.

A Guiana e os EUA ignoram o Acordo de Genebra e a gigante de energia estadunidense ExxonMobil iniciou a exploração de petróleo na área, que deveria permanecer à espera da solução do conflito. Mas os interesses petrolíferos dos EUA são contrários à soberania da Venezuela.

O plebiscito realizado na Venezuela é apenas mobilização interna. Não tem efeito externo. O governo venezuelano não ocupará militarmente o Essequibo, pois sabe do tratado de defesa da Guiana com o Reino Unido, além da base militar estadunidense, a 1ª Brigada de Assistência e Segurança / SFAB, que já se reuniu com a Força de Defesa da Guiana (FDG) em novembro passado. A reunião foi um recado dos EUA para a Venezuela. Além disso, os EUA têm as bases de Aruba e do Panamá. O desajuste diplomático que já se arrasta por dois séculos se estenderá, mas não há risco de conflito militar.

A Constituição brasileira dispõe que um dos princípios que regem a República nas suas relações internacionais é a solução pacífica dos conflitos. O Brasil não deve se ocupar militarmente da questão, embora a direita militar pretenda sair do bueiro, assumir protagonismo, reassumir papel político, ampliar o orçamento para compras militares, mostrar seu "valor" e voltar ao poder, com golpe ou manipulação de "patriotas inadvertidos".

A questão do Essequibo será resolvida com o tempo. Mas não agora. Enquanto a ExxonMobil não esgotar a indevida exploração do petróleo da região, os EUA não retirarão o apoio da Guiana. E Maduro não repetirá o que fez Saddam Hussein no Kuwait.
 

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