Foto: Michel Filho / Agência O Globo Entre os dias 13 e 14 de julho, em Douradina, cidade que fica aproximadamente a 3h de Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul (MS), indígenas Guarani-Kaiowá, da Terra Indígena (TI) Panambi – Lagoa Rica, retomaram parte de seu território ancestral que estava ocupado pela monocultura.
O revide de fazendeiros da região foi imediato. Jagunços em caminhonetes pretas cercaram a retomada e começaram a atirar. No mesmo fim de semana, na cidade vizinha, Caarapó, outra retomada também foi atacada a tiros. Os ataques culminaram em ao menos duas pessoas baleadas, entre elas um cacique de 52 anos, além de uma liderança religiosa agredida nos braços e pernas e outros feridos.
POR QUE ISSO IMPORTA?
Esses dados evidenciam a grave situação de violência e violações de direitos enfrentada pelos povos indígenas no Brasil. Os assassinatos e ataques registrados mostram um cenário de insegurança e impunidade, refletindo a falta de proteção.
Desde então, as retomadas continuam ameaçadas, com lideranças da região denunciando constantemente o terror vivido nos últimos dias. Além dos tiros, jagunços incendiaram a área em torno da retomada em Douradina. Nem mesmo a presença da Força Nacional na região intimidou os criminosos ou impediu os ataques. O cerco aos Guarani-Kaiowá limitou o acesso das comunidades à comida, resultando em vários pedidos de cestas básicas. Além disso, há denúncias de que estabelecimentos comerciais da cidade se recusam a vender comida aos indígenas.
A violência perpetrada contra essas comunidades condiz com as informações do relatório “Violência contra os Povos Indígenas no Brasil — 2023”, divulgado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) nesta segunda (22). O documento apresenta um retrato das diversas violências e violações praticadas contra os povos indígenas em todo o país.
De acordo com o relatório, o primeiro ano do governo Lula restabeleceu as ações de fiscalização e repressão às invasões em alguns territórios indígenas. Contudo, a demarcação de terras e as ações de proteção e assistência às comunidades continuam insuficientes. A publicação destaca que o ambiente institucional continuou a atacar os direitos indígenas, resultando na persistência de invasões, conflitos, violência contra as comunidades indígenas e altos índices de assassinatos, suicídios e mortalidade infantil.
Conforme a publicação, no último ano foram registrados 43 assassinatos de indígenas no Mato Grosso do Sul, colocando-o em segundo lugar no ranking nacional de violência contra essa população. Roraima lidera o ranking com 47 mortes, enquanto o Amazonas está em terceiro, com 36 casos.
Diante disso, a palavra que os Kaiowá encontraram para chamar o horror em que vivem é guerra. “Nós estamos numa guerra onde o povo Guarani-Kaiowá é massacrado. A gente não vai ficar em paz sem a demarcação, homologação e posse do nosso território”, afirmou um indígena da Panambi, que preferiu não se identificar por segurança.
Direito à terra
A luta dos indígenas Guarani-Kaiowá pela demarcação de suas terras no Mato Grosso do Sul dura décadas. No caso da TI Panambi – Lagoa Rica, a espera é desde 2011, quando 12,1 mil hectares de seu território foram identificados e delimitados.
Porém, seu processo de demarcação está paralisado dada a morosidade do Estado e medidas legislativas inconstitucionais como a Lei 14.701 e a PEC 40, que buscam instituir a tese do marco temporal, que propõe que os povos indígenas tenham direito apenas às terras que estavam ocupando na data da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988. Tal tese foi considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Em um vídeo publicado neste sábado (20) pela Aty Guasu, a assembleia geral do povo Guarani-Kaiowá, uma ñandesy – liderança espiritual da comunidade –, em meio à PM e à Força Nacional na TI Panambi, reafirmou a resistência do povo e o seu direito à terra:
“Essa terra tem dono: essa terra é nossa! Ela nos foi entregue pelos nossos ancestrais. Essa terra foi feita por nossos encantados e foi deixada para nós. Nós vamos permanecer aqui. Nós pedimos que os invasores saiam daqui, porque esta terra pertence a nós. Nós queremos viver e plantar aqui. Queremos esta terra pros nossos netos. Para todas as crianças, à geração que está vindo. Estamos lutando por essa terra. Vamos morrer aqui mesmo! Não importa o ataque, morreremos aqui”.
A situação dos Kaiowá não é isolada. Indígenas de várias regiões do país, cansados da inação do Estado na demarcação de terras, estão retomando seus territórios, resultando em um alto número de conflitos. Em julho, pelo menos 13 ataques a indígenas foram registrados, principalmente em retaliação a retomadas e autodemarcações em estados como Paraná, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, Ceará e Pará.
De acordo com o relatório do Cimi, do total de 1.381 terras e demandas territoriais indígenas existentes no Brasil, a maioria (62%) segue com pendências administrativas para sua regularização, conforme a base de dados da organização. São 850 terras indígenas com pendências, atualmente. Destas, 563 ainda não tiveram nenhuma providência do Estado para sua demarcação.
Situação que o relatório classifica como “violência contra o patrimônio”. Os registros dessa seção dividem-se em três categorias: omissão e morosidade na regularização de terras, na qual foram registrados 850 casos; conflitos relativos a direitos territoriais, que teve 150 registros; e invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio, com 276 casos.
O Ministério dos Povos Indígenas (MPI) informou na última terça (16), em conjunto com o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) e a Funai, que duas missões foram estabelecidas para mediar conflitos fundiários nos estados do Mato Grosso do Sul e do Paraná, após ataques com armas de fogo. O MPI ainda disse que os ataques contra os Kaingang no Rio Grande do Sul vêm sendo monitorados e acompanhados pelo ministério.
O MPI enfatizou que “a instabilidade gerada pela lei do marco temporal (lei 14.701/23), além de outras tentativas de se avançar com a pauta, como a PEC 48, tem como consequência não só a incerteza jurídica sobre as definições territoriais que afetam os povos indígenas, mas abre ocasião para atos de violência que têm os indígenas como as principais vítimas”.
Nos três casos destacados pelo MPI (Avá-Guarani no PR, Guarani-Kaiowá no MS e Kaingang no RS), houve incêndios criminosos nas retomadas. Os agressores incendiaram malocas e matas ao redor. Em todos os casos, denunciam os indígenas, os ataques ocorreram horas após a saída de representantes do ministério e apesar da presença da Força Nacional deslocada pelo governo federal para as regiões.
Omissão do poder público
O ano de 2023 também foi marcado pela omissão de agentes públicos em situações relacionadas à morte de indígenas, que poderiam ter sido evitadas. Segundo o relatório, foram registradas 1.040 mortes de crianças indígenas de 0 a 4 anos, principalmente no Amazonas (295), Roraima (179) e Mato Grosso (124). A maioria das mortes foi causada por doenças evitáveis, como gripe e pneumonia (141), diarreia e gastroenterite (88) e desnutrição (57).
Além disso, ocorreram 180 suicídios de indígenas, com os maiores índices no Amazonas (66), Mato Grosso do Sul (37) e Roraima (19). Houve 344 casos de desassistência, incluindo educação (61), saúde (100) e desassistência geral (66).
O documento destaca a situação crítica dos povos indígenas em isolamento voluntário em 2023. Dos 119 registros de isolados feitos pela Equipe de Apoio aos Povos Livres (Eapil) do Cimi, 56 estavam em terras indígenas que sofreram invasões ou danos. Além disso, 37 registros de isolados fora de terras reconhecidas não receberam proteção adequada. A maioria das operações de fiscalização foi insuficiente, e lideranças de TIs como Vale do Javari, no Amazonas, e Karipuna, em Rondônia, continuaram denunciando a presença de invasores.
O relatório ainda frisa que a falta de infraestrutura escolar, sanitária e de água potável, agravada pela crise climática, aumentou a vulnerabilidade das comunidades indígenas.