Polícia Federal investiga atuação de milícias do garimpo em Roraima

Operações identificaram grupos suspeitos de envolvimento com pistolagem, escolta de ouro e tortura; levantamento do MP aponta o envolvimento de policiais, entre eles cem PMs com a atividade de mineração ilegal

- Fonte: O Globo
09/06/2025 13h49 - Atualizado há 13 horas

Foto: PF/Arquivo

Em fevereiro de 2023, na zona rural de Caracaraí (sul de Roraima), a 140 quilômetros de Boa Vista, dois policiais civis do Amazonas abordaram um agricultor pedindo que ele indicasse o local onde havia ocorrido um tiroteio. Era uma emboscada. Ao virar a esquina, ele foi rendido pela dupla, que exibia o distintivo e estava armada com pistolas, submetralhadora e espingarda. Os agentes buscavam uma carga roubada de 18 toneladas de cassiterita (o ‘ouro negro” da Amazônia), extraída ilegalmente da Terra Yanomami e avaliada em cerca de R$ 1 milhão.

Segundo o Ministério Público de Roraima, o agricultor foi algemado e torturado com tapas e choques para revelar o paradeiro da carga. Depois, três homens que se identificaram como integrantes do Batalhão de Operações Especiais (Bope) de Roraima se juntaram ao grupo acompanhados do suposto dono do minério e continuaram o interrogatório. Após concluírem que o homem não havia roubado o material, ele foi liberado sob ameaça de morte caso denunciasse o ocorrido. A vítima, no entanto, era irmã de um policial, e o caso foi levado ao MP e à Polícia Federal.

No fim do mês passado, a PF realizou uma operação para desarticular o grupo formado por agentes de segurança que faziam a escolta e transporte ilegal do metal retirado da reserva indígena. Seis pessoas foram presas, entre elas os dois policiais civis do Amazonas envolvidos no suposto sequestro, o delegado chefe deles e um policial militar de Roraima.

Procurada, a Polícia Civil do Amazonas disse que “está à disposição para prestar todas as informações necessárias e colaborar com o total esclarecimento dos fatos”. A PM de Roraima afirmou que a Corregedoria apura o caso e que não “compactua com condutas ilícitas eventualmente praticadas por seus membros”.

Operações como essa se tornaram frequentes em diferentes regiões da Amazônia Legal — pelo menos dez delas foram deflagradas nos últimos dois anos. O GLOBO analisou mais de 700 páginas de decisões judiciais, relatórios da PF e do Ministério Público que apontam a existência de milícias a serviço da mineração ilegal. A atuação dos grupos envolve segurança privada, lavagem de dinheiro, pistolagem e fornecimento de armas e munições a garimpeiros. Em um dos casos, os policiais passaram até a ser donos de áreas de exploração ilegal de ouro dentro de uma reserva indígena.

— Chamo isso de milicianização do garimpo, já que há agentes do Estado a serviço desses grupos. É resultado do volume de recursos da atividade ilegal, que alimenta toda uma rede de corrupção de agentes públicos — afirmou Aiala Colares Couto, pesquisador da Universidade do Estado do Pará e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

Um levantamento feito pelo MP de Roraima aponta o envolvimento de pelo menos cem policiais militares com a atividade de mineração ilegal no estado. O número se baseia em denúncias e relatórios de inteligência recebidos pela Promotoria nos últimos cinco anos. Para um investigador, a quantidade deve ser maior, já que garimpeiros em áreas ilegais muitas vezes não denunciam as extorsões.

Um desses casos foi revelado em março, quando a PF fez uma operação mirando um major aposentado da Polícia Militar de Roraima que supostamente fornecia armas e combustível para garimpos ilegais na Terra Yanomami. Na mesma área de exploração ilegal, o ex-PM Gilson Viana, conhecido como Mutum, foi assassinado a tiros após uma briga em um bar do garimpo, em dezembro de 2024 — na época, ele estava foragido da Justiça. As autoridades o consideravam um dos pistoleiros mais temidos da região, responsável pela morte de dez pessoas no Estado.

‘Dono’ de garimpos

Já no sul do Pará, a PF descobriu a atuação de uma milícia que controlava garimpos na Terra Indígena Kayapó por meio da cobrança de taxas e ameaças. Em setembro de 2024, quatro agentes de segurança pública foram presos: um delegado e um escrivão da Polícia Civil e dois sargentos da Polícia Militar.

Segundo as investigações, o delegado foi apontado como ‘dono’ de uma área de exploração em Santa Maria das Barreiras (PA) e cobrava taxas de até R$ 500 mil para deixar garimpeiros extraírem ouro dos garimpos Moça Bonita e Santile, situados na reserva indígena, além de prometer “inibir a ação da PF na região”.

Ao decretar a prisão dos policiais, o juiz federal do Pará Carlos Chaves afirmou que há indícios “fortíssimos” de que o delegado “se beneficia dos crimes praticados por outros integrantes da organização criminosa” e é “pessoalmente ‘dono’ de garimpos e explora ilegalmente ouro, utilizando-se de seu cargo público para amedrontar rivais, em quase regime de milícia”.

A mando do delegado, conforme as investigações, um PM agia como “uma espécie de xerife” e seria o responsável pelo assassinato de um rival que disputava o controle da área a bala, em 2023. O escrivão, por sua vez, cuidava da lavagem de dinheiro e movimentou em suas contas R$ 39,8 milhões em apenas sete meses, segundo o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). A decisão afirma que o montante “não têm correspondência alguma com o cargo público que ocupa”.

Procurada, a Polícia Civil do Pará afirmou que os agentes foram “afastados das funções” e um “Processo Administrativo Disciplinar (PAD)” continua em andamento. A PM do Pará afirmou que a Corregedoria investiga o episódio.

Para o pesquisador e professor da Universidade Federal de Roraima Rodrigo Chagas, o envolvimento dos policiais com os garimpos começa com os “bicos”, serviços realizados fora do expediente:

— É normal que o bico em Roraima seja em garimpos. É uma estrutura histórica: os policiais são os operadores dos donos do garimpo que são empresários e políticos.

Outro caso foi exposto em novembro de 2024, quando a PF saiu às ruas para prender dois oficiais da Polícia Militar do Pará — um coronel e um tenente-coronel chefes de batalhões em Itaituba — e cumprir buscas contra um major, um capitão, quatro sargentos e um cabo. A decisão judicial ainda mandava o governo do Pará afastar 35 PMs do cargo. O motivo: os oficiais forneciam suporte logístico e segurança a mineradoras ilegais na região da Rodovia Transgarimpeira, onde eles eram considerados a “lei”. Parte do ouro dessas empresas vinha da Terra Indígena Munduruku, segundo a PF.

De acordo com a decisão judicial, o coronel usava sua “posição hierárquica” para “deslocar praças e oficiais da instituição para atender aos interesses de mineradoras”. A partir de uma interceptação telefônica, a PF identificou que uma viatura oficial foi colocada à disposição para a retirada de ouro. Segundo relatório da PF, o “apoio” da PM se dava nos dias de pagamento dos garimpeiros. Em nota divulgada na época, a PM do Pará informou que afastou os agentes e exonerou os militares que exerciam função de comando.