SÃO LUIZ DO ANAUÁ: A cidade campeã de emendas per capita no Brasil decreta calamidade financeira

- Por: Tiago Mal/Colunista do UOL
22/07/2025 08h05 - Atualizado há 8 horas
SÃO LUIZ DO ANAUÁ: A cidade campeã de emendas per capita no Brasil decreta calamidade financeira
Portal inacabado e pago com dinheiro de emendas em São Luiz do Anauá; moradores dizem que obra foi inspirada na casa do sertanejo Gusttavo Lima Imagem: Divulgação/CPI da Assembleia Legislativa de RR

São Luiz do Anauá, no sul de Roraima, a cidade que proporcionalmente mais recebeu pagamentos de emendas parlamentares nos últimos cinco anos no Brasil, decretou calamidade financeira depois de ficar sem dinheiro para pagar os funcionários.

Com 7.315 habitantes, o município recebeu R$ 126 milhões em emendas de deputados e senadores de janeiro de 2020 a maio de 2025. Ou seja, foram R$ 17,4 mil por habitante, 33 vezes a média do que foi recebido pelos municípios brasileiros (R$ 525 por habitante).

A administração atual cita uma série de indícios de desvios e de desperdício dos recursos federais, como um portal de 25 metros de altura e arquitetura neoclássica, ainda inacabado, que moradores dizem ter sido inspirado na casa do cantor sertanejo Gusttavo Lima.

Conforme mostrou ontem o UOLa distribuição de recursos de emendas no Brasil ignora indicadores de desenvolvimento e o dinheiro nem sempre chega às cidades que mais precisam.

A maior parte do dinheiro encaminhado a São Luiz do Anauá — R$ 92 milhões — foi transferida via emendas Pix. É uma modalidade em que o dinheiro é enviado de forma mais rápida e, até recentemente, sem exigência de projeto, criticada por ter menos transparência e controle, favorecendo o mau uso de recursos públicos.

"Esse recurso entra direto no caixa do município. Até recentemente, não tinha plano de trabalho e nem necessidade de prestação de contas. Com menos controle, o risco do dinheiro sumir por corrupção ou ineficiência aumenta", diz Juliana Sakai, diretora executiva da Transparência Brasil.

O sumiço dos recursos é exatamente o que o atual prefeito Elias da Silva (PP), conhecido como Chicão, afirma ter ocorrido ao fim da gestão do prefeito anterior, James Batista (Solidariedade), encerrada no ano passado.

"Há muitas obras inacabadas. Foram feitos pagamentos sem a obra ter sido feita e não há dinheiro para concluir", diz o atual prefeito. Ao decretar calamidade financeira, uma espécie de "falência", a cidade busca condições para renegociar contratos e pagamentos.

Em entrevista ao UOL, Chicão listou uma série de desvios relacionados a obras na cidade. A atual equipe identificou uma série de pagamentos feitos por obras não executadas:

  • Parque da Vaquejada - R$ 6,6 milhões desviados;
  • Praça dos Buritis - R$ 3 milhões;
  • Portal da cidade - R$ 1,8 milhão;
  • Casas populares - R$ 1,2 milhão.

Ainda segundo o prefeito, a gestão anterior desviou R$ 680 mil de empréstimos consignados que foram descontados do salário dos funcionários, mas não foram repassados aos bancos.

Chicão culpa seu antecessor pelo caos financeiro na cidade, mas os dois já foram aliados políticos. Nas duas gestões anteriores onde teriam ocorrido os desvios, Chicão foi vice-prefeito e, depois, secretário da Saúde. 

O atual prefeito diz, porém, que não sabia dos problemas e que rompeu relações com o antecessor depois de ter recebido o município "sem um centavo". As denúncias de desvio foram encaminhadas pela prefeitura à CGU (Controladoria-Geral da União), ao TCU (Tribunal de Contas da União), à Polícia Federal e ao Ministério Público.

"Precisa chamar a atenção dos órgãos de controle para que eles investiguem e o dinheiro seja devolvido", diz o deputado estadual Gabriel Picanço (Republicanos), que é de São Luiz do Anauá e acompanha o caso.

Portal da discórdia

Um suntuoso portal de 25 metros de altura na entrada da cidade tornou-se exemplo do desperdício de recursos em São Luiz do Anauá.

Ele foi anunciado como uma das obras que preparariam a cidade para receber um público de mais de 50 mil pessoas (ou seja, sete vezes a população do município) num evento em 2022 que prometia a participação do cantor Gusttavo Lima.

O show do sertanejo foi cancelado pela Justiça depois de o Ministério Público alertar que a cidade havia comprometido os recursos sem indicar de onde viria o dinheiro. Várias das obras prometidas não foram concluídas.

O portal, que é comparado por moradores com a arquitetura da casa de Gusttavo Lima, ficou pronto, mas os carros que entram na cidade não passam por debaixo dele porque faltam as obras de pavimentação para chegar ao portal.

"É um exagero ter um portal dessa magnitude no menor município do estado. Hoje a gente passa por um desvio porque ainda precisa ser feita uma ponte e colocar o asfalto", diz o atual prefeito.

De acordo com Chicão, foram R$ 5 milhões de emendas destinados à obra. A reportagem identificou duas emendas pix do ex-deputado Édio Lopes (R$ 2,4 milhões) e uma do ex-senador Telmário Mota (R$ 900 mil).

Cidade está em estado menos populoso

Roraima é o estado menos populoso do Brasil: 636 mil habitantes. É também o que tem o menor número de municípios: 15. Apesar disso, possui 8 deputados e 3 senadores no Congresso. É o mesmo número, por exemplo, do Amazonas, que tem 3,9 milhões de habitantes.

A distribuição de emendas ocorre por critérios políticos e segue a lógica do número de representantes no Congresso, ignorando indicadores de desenvolvimento das cidades.

Esta é uma das razões para Roraima receber o maior volume proporcional de emendas. Atualmente, só de emendas individuais, os congressistas de Roraima têm R$ 500 milhões por ano para distribuir. Somando as emendas de bancada e comissão, este valor pode ultrapassar R$ 1 bilhão para ser dividido com 15 municípios.

É por isso — e não por qualquer critério de necessidade — que as cidades roraimenses estão entre as mais beneficiadas do país por emendas. São Luiz do Anauá, a menor cidade do estado, foi a que mais recebeu dinheiro proporcionalmente.

Isso também explica em parte o fato de que, mesmo com tantos problemas, a cidade continue recebendo emendas. Enquanto um senador da Bahia tem 417 municípios onde pode dividir seus R$ 69 milhões anuais de emendas, o senador de Roraima, com o mesmo valor, tem 15.

Apesar do caos financeiro, deputados e senadores já apareceram novamente neste ano em ao menos 10 vídeos com o atual prefeito anunciando entregas de novas ambulâncias, tratores, caminhonetes e obras de pavimentação.

UOL entrou em contato com os congressistas que mais destinaram recursos à cidade. Eles negam envolvimento com suspeitas de desvio relatadas pela atual gestão e afirmam que a aplicação dos recursos é de inteira responsabilidade da administração municipal.

CPI na Assembleia Legislativa

Além das acusações de desvio de recursos federais, a gestão anterior também é acusada de mau uso de recursos estaduais. São apurados indícios de desvio na aplicação de uma emenda estadual de R$ 2,6 milhões para compra de medicamentos e em outra de R$ 900 mil para ambulâncias.

"Pela nossa competência, só consigo investigar esses processos de emenda estadual. Mas a cidade é campeã de emendas federais. Nós precisamos que o Congresso faça alguma coisa, a Câmara dos Deputados, porque é um absurdo", diz o deputado estadual Jorge Everton, relator de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) aberta em março na Assembleia Legislativa de Roraima para investigar acusações de desvio de recursos.

A comissão determinou recentemente a quebra de sigilo fiscal da empresa TechMix, responsável pela construção do portal da cidade e de obras bancadas tanto com recursos federais quanto estaduais. Os parlamentares aguardam o envio de dados pelos bancos.

O dono da empresa, Marcio Muller, não atendeu às ligações do UOL. Por mensagem, disse apenas que a parte dele na obra do portal está entregue e que o restante cabe a outras empresas.

De acordo com o relator da CPI há suspeitas em relação à evolução do patrimônio do antigo prefeito. "O James era professor municipal de São Luiz, com um salário bem baixo. Ele tem agora posto de gasolina, fazenda, gado, a mulher dele anda de Jeep, tem casas em outros municípios", afirma Jorge Everton.

A reportagem entrou em contato com o ex-prefeito James Batista, por meio de seu advogado, mas não recebeu resposta sobre os questionamentos até a publicação deste texto.

 


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