Ao longo do primeiro ano de vigência do marco temporal (Lei 14.701/2023), 211 indígenas foram assassinados no país. A maior parte deles tinha entre 20 e 29 anos e os estados com mais casos foram Roraima, Amazonas e Mato Grosso do Sul. Os dados, referentes ao ano de 2024, estão no Relatório Violências contra Povos Indígenas no Brasil, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), publicado nesta segunda-feira (28).
A vigência do marco temporal – tese ruralista segundo a qual só podem ser demarcadas terras ocupadas por povos originários até 5 de outubro de 1988, quando a Constituição foi promulgada – é apontada pelo documento como o cerne da escalada de violência e da morosidade na demarcação de terras no Brasil.
Foram registrados 424 casos de violências dirigidas pessoalmente contra indígenas no ano passado. Além dos assassinatos, houve 20 ameaças de morte, com maior incidência no Maranhão e Rondônia e 35 casos de ameaças de outro tipo, tais como estelionato, trabalho análogo à escravidão e intimidações, muitas vezes envolvendo disparos de armas de fogo.
Ainda no início de 2024, cerca de três meses depois que o Congresso Nacional aprovou o marco temporal em afronta ao Supremo Tribunal Federal (STF) que havia declarado sua inconstitucionalidade, aconteceu no sul da Bahia um dos episódios mais emblemáticos registrados no relatório.
A liderança indígena Maria Fátima Muniz de Andrade, conhecida como Nega Pataxó, foi assassinada no território tradicional Caramuru-Catarina Paraguaçu em 21 de janeiro de 2024, em um ataque com cerca de 200 homens articulados pelo grupo “Invasão Zero”, em uma ação de reintegração de posse ilegal contra uma retomada indígena. Os fazendeiros invadiram a área e dispararam contra a comunidade. Além de Nega, que foi morta enquanto segurava seu mbaraká na mão, outros três foram baleados. Entre eles, o seu irmão, o cacique Nailton Pataxó Hã-Hã-Hãe.
Os indígenas denunciaram que policiais militares presentes nada fizeram para intervir ou socorrer os feridos. Dois homens foram presos em flagrante e, em agosto, o acusado de autoria do assassinato foi solto da prisão preventiva por decisão da 1ª Vara Federal de Itabuna após pagar uma fiança de R$ 28.240.
Outro caso de destaque é o de Neri Ramos da Silva. O jovem Guarani Kaiowá de 23 anos foi morto com um tiro na cabeça disparado por um policial militar em 18 de setembro, na cidade de Antônio João (MS). A operação policial visava proteger a Fazenda Barra, da família Ruiz, sobreposta à Terra Indígena (TI) Nhanderu Marangatu. De acordo com os indígenas, os policiais alteraram a cena do crime e arrastaram Neri já alvejado, tentando impedir que seus parentes recuperassem seu corpo.
Pouco antes, em agosto, no mesmo Mato Grosso do Sul, mas na TI Panambi Lagoa-Rica, em Douradina (MS), três ataques armados feriram 12 indígenas que fizeram retomadas na área. Um dos jovens segue, até o momento, com uma bala alojada na cabeça. Durante meses, os indígenas conviveram com um acampamento de fazendeiros e pistoleiros a poucos metros da comunidade do tekoha Yvy Ajherê, com uma tenda da Força Nacional no meio. A reportagem do Brasil de Fato documentou o caso.
“O povo Avá Guarani do Paraná seguiu sendo vítima constante de ataques em 2024, assim como os Guarani e Kaiowá em Mato Grosso do Sul, especialmente entre julho e setembro”, salienta o relatório.
“Comunidades indígenas buscaram garantir, por meio de ocupações e retomadas, um mínimo espaço vital de subsistência em seus próprios territórios, em meio ao cenário de desesperança em relação ao avanço das demarcações. Em retaliação, sofreram violentos ataques em série de fazendeiros e jagunços, com a conivência – e, em muitos casos, com a participação direta – de forças policiais”, descreve o documento.
Em relação a 2023, a quantidade de focos de incêndio em Terras Indígenas mais que dobrou, mesmo considerando apenas os territórios já delimitados. A TI Inãwébohona, no Tocantins, registrou 1.126 focos de incêndio em 2024. Foi ali que a “Mata do Mamão”, habitada por indígenas isoladas, foi quase totalmente assolada.
A devastação por garimpo ilegal na TI Sararé, do povo Nambikwara, no Mato Grosso (MT) é um dos alertas do relatório, segundo o qual a destruição foi quase quatro vezes maior que no ano anterior. O garimpo, que havia devastado 343 hectares do território indígena em 2023, avançou em 1.317 hectares em 2024, chegando a menos de 200 metros das aldeias.
No Pará, na TI Munduruku, houve um crescimento de 145% na área desmatada, em relação ao ano anterior. Foram 539 hectares de perda de cobertura vegetal nativa. As queimadas na região também foram extensas. O território Munduruku, junto com as TIs Kayabi e Sai Cinza, registraram três vezes mais focos de incêndio em 2024 do que em 2023.
Ainda no Pará, o relatório do Cimi constata um “aumento preocupante” de doenças neurológicas em crianças e mulheres na TI Apyterewa, possivelmente relacionadas a intoxicação por mercúrio, devido à atividade garimpeira.
Incitada a comentar o impacto do marco temporal por meio de um pedido via Lei de Acesso à Informação (LAI) feito pelo Cimi, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) declarou que a vigência da tese ruralista afeta potencialmente “todas as Terras Indígenas que se encontram em fase administrativa anterior à regularização”.
Para o Cimi, trata-se de elemento central para o que considera um “avanço lento” e “insuficiente” das demarcações em 2024. Ao longo do ano, foram apenas cinco homologações, 11 portarias declaratórias e 16 Grupos Técnicos (GT) criados pela Funai.
Atualmente no país há 857 Terras Indígenas com pendências administrativas para serem regularizadas. Entre estas, 555 não têm qualquer providência tomada para o início da sua demarcação.
Em 21 de setembro de 2023, o STF considerou o marco temporal inconstitucional. A reação do Legislativo já estava engatilhada. No mesmo dia, o senador Hiran Gonçalves (PP-RR) apresentou a PEC 48, que prevê a inclusão da tese ruralista na Constituição. A proposta segue em tramitação. Paralelamente e naquele mesmo mês, o Congresso Nacional aprovou a Lei 14.701/23 que, até segunda ordem, colocou em vigor o marco temporal.
No ato, o STF recebeu ações opostas para definir sobre a validade ou não da lei. Relator, o ministro Gilmar Mendes optou por, em vez de respaldar decisão já tomada e superada pela Corte, criar uma “câmara de conciliação” para rediscutir o tema. Inaugurado em agosto de 2024, quando os Guarani Kaiowá tomavam tiros em Douradina (MS), o grupo de trabalho durou até o último 23 de junho.
Reforçando o que já denunciava o movimento indígena desde que a comissão foi criada, quando se retirou da mesa por considerá-la uma “farsa” que buscava “negociar o inegociável”, o grupo no STF nada conciliou. Na última sessão, o juiz auxiliar do gabinete de Gilmar Mendes, Diego Veras, disse que “o ministro não deliberou sobre o que vai fazer com o produto desta comissão, se ele vai submeter tão somente isso ao plenário, se ele vai retornar aqui para a votação, não decidiu”.
Enquanto o tema não é definitivamente apreciado pelo STF, o marco temporal segue flanco aberto no Brasil. “Como consequência”, pontua o relatório do Cimi, “as demarcações avançaram em ritmo lento e terras indígenas, inclusive já regularizadas, registraram invasões e pressão de grileiros, fazendeiros, caçadores, madeireiros e garimpeiros – entre outros invasores, que se sentiram incentivados pelo contexto de desconfiguração de direitos territoriais”.
“Além de aplicar esta tese, a Lei prevê ainda mudanças significativas nos procedimentos administrativos de reconhecimento territorial. Algumas dessas mudanças são de difícil cumprimento e já incorrem, conforme a própria Funai, em um ‘um aumento da morosidade dos processos de demarcação de terras indígenas’. Outras ‘pecam por falta de clareza e por contradição’ e chegam a ser ‘inexequíveis’”, alerta o documento.
Entre os 1.241 casos de violência contra o patrimônio dos povos indígenas, o relatório registra 154 conflitos relativos a direitos territoriais em 114 TIs distribuídas em 19 estados do país. Em praticamente dois terços dos casos, as terras não foram ainda regularizadas.
Outras 159 TIs tiveram 230 casos de invasão possessória, exploração ilegal de recursos naturais e outros danos diversos em 21 estados durante o ano de 2024. Já nestes casos, a maior parte das áreas (61%) acontece em territórios já regularizados.
O relatório salienta, ainda, que a exploração ilegal de petróleo na Foz do Rio Amazonas já gera impactos psicológicos severos. O avanço de projetos de crédito de carbono em TIs outras comunidades, feito comumente sem o devido debate e compreensão, também é um dos problemas detectados no levantamento.
Em 2024 foram registrados 208 suicídios de indígenas no Brasil. Assim como no ano anterior, os estados que lideram o índice são Amazonas, Mato Grosso do Sul e Roraima. Em 69% dos casos, as pessoas que tiraram suas próprias vidas tinham entre 19 e 29 anos de idade.
Além disso, foram registrados 922 óbitos de crianças entre 0 e 4 anos, tendo como principais causas mortes consideradas evitáveis, como aquelas ocasionadas por gripe e pneumonia, desnutrição, diarreia, gastroenterite e doenças infecciosas intestinais.
Os suicídios e as mortes infantis evitáveis estão categorizadas, no relatório do Cimi, como consequências da omissão do poder público. Assim como está, também, a falta de proteção aos territórios de indígenas em isolamento voluntário que ainda não tem o reconhecimento estatal. Na Amazônia Legal brasileira, este é o caso de 119 áreas. Destas, 37 permanecem sem providências da Funai para proteção ou demarcação.