02/08/2023 às 07h22min - Atualizada em 02/08/2023 às 07h22min

6 meses após ação do governo, garimpeiros, malária e fome ameaçam Yanomâmis em Roraima.

Na avaliação dos grupos indígenas, o governo precisa tomar medidas para conseguir lidar com a situação

- Por Jamil Chade (Uol)
Criança com desnutrição é carregada no colo por enfermeira para tratamento em Surucucu. Foto: Lalo de Almeida/Folhapress



Meio ano depois das imagens que deram a volta ao mundo e revelaram o abandono do Povo Yanomami em Roraima pelo governo de Jair Bolsonaro, os indígenas apontam que continuam sofrendo. O resgate da população no Norte do país praticamente inaugurou o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, enquanto informes revelaram que a antiga administração sabia da crise humanitária que assolava a região.

Agora, num documento de análise produzido pelas próprias associações do povo yanomami, a constatação é de que os garimpeiros resistem, a malária explodiu e o abastecimento de alimentos não está sendo ainda suficiente. Seis meses após o governo federal decretar Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional na Terra Indígena Yanomami, a devastação da floresta começa a desacelerar, mas os yanomamis e ye'kwanas seguem sofrendo com os efeitos do garimpo ilegal em seu território.

Com o título "Nós ainda estamos sofrendo!", o relatório foi produzido por associações yanomami e ye'kwana e pede urgência por uma melhor coordenação do governo federal, além de um incremento real das ações em saúde e proteção territorial. Procurado pela reportagem, o Ministério da Saúde não deu respostas.
"Nós, lideranças do Papiú, gostaríamos de denunciar o retorno de garimpeiros em nossa região", afirma um dos indígenas citado no informe. "Apesar das autoridades e do presidente Lula já terem limpado a floresta, os garimpeiros continuam voltando, por isso mandamos essas palavras. Apesar de existir a demarcação, eles estão voltando pelos rios. Nós queremos que vocês, de fato, retirem estes invasores", pede.

No documento, as entidades ainda sugerem ampliar o diálogo com governo federal para que aprimoramentos sejam estabelecidos na operação. O levantamento confirma que o desmatamento apresentou uma desaceleração em 2023, em comparação com o período da gestão de Jair Bolsonaro, quando quase sextuplicou. Mas os indígenas relatam a permanência de garimpeiros ilegais em diversos pontos na Terra Indígena Yanomami.

Os responsáveis pelo levantamento - Hutukara Associação Yanomami (HAY), Associação Wanasseduume Ye'kwana (SEDUUME), e Urihi Associação Yanomami - destacam como o governo de fato adotou medidas que vem dando certo. Mas também expõem "falhas nas ações, como a ausência de uma coordenação do governo federal e problemas nas áreas de saúde, proteção territorial, desintrusão e segurança alimentar".

O relatório contou com o apoio técnico do Instituto Socioambiental (ISA). Eis as principais conclusões do levantamento:

Malária e atendimento ainda escasso
No que se refere à situação de saúde, o informe reconhece o impacto positivo da criação de um centro de referência em Surucucus. Mas alerta que comunidades isoladas ainda carecem de atendimento.

 
"Durante o período de transição e início do novo governo, fotos de Yanomami doentes e desnutridos tornaram-se virais nas redes sociais, e foram importantes para chamar a atenção do governo federal ao problema e dar início à Emergência. No entanto, seis meses após a visita do presidente (Lula) a Roraima, a Saúde ainda carece de estruturação", alertam as entidades.

Um dos aspectos destacados é a existência de muitas regiões desassistidas, enquanto há uma concentração de profissionais em Surucucu. "Os polos de regiões sensíveis continuam com equipes incompletas ou com tamanho incompatível com a demanda", alertam.

Há regiões que seguem dependentes de missões de saúde esporádicas, que duram sete dias e não tem prazo para serem repetidas.
O resultado é que atendimentos que deveriam fazer parte da rotina como pesagem de crianças, pré-natal, vermifugação e tratamento de malária se tornam impossíveis para os yanomamis que vivem nas regiões mais remotas.

Enquanto isso, a malária segue crescendo. De janeiro a julho de 2023, houve 12.252 casos, o que representa 80% do total registrado em 2022.
"É impossível em uma aldeia, com cem pessoas com sintoma de malária, uma equipe de duas pessoas em missão fazer qualquer outra coisa que não testar a população e tratar os mais graves", declarou uma profissional da saúde que pediu para não ser identificada.

Para dar conta da situação, os pacientes mais graves são levados para Surucucus. O centro, porém, já no dia da inauguração operava com 90% da capacidade. "Embora tenham sido realizados até julho mais de 8 mil atendimentos, os Yanomami se queixam que os profissionais da Força Nacional do SUS raramente se deslocam para realizar ações de saúde nas comunidades", alertam as entidades.

Por outro lado, os profissionais de saúde ainda vivem com o sentimento de insegurança devido à persistência de invasores garimpeiros no território.

Garimpeiros ainda presentes
Se em junho o governo comemorou o fim de alertas de garimpos na Terra Yanomami e a ausência de novos alertas por 30 dias, os indígenas destacam que isso não significou o fim da exploração ilegal. De acordo com eles, as chuvas que iniciam em abril dificultam o sensoriamento remoto, além de que garimpeiros podem estar atuando em áreas que já foram desflorestadas. Em junho, os informes apontaram para a presença de garimpeiros se movimentando pelos rios Apiaú e Couto Magalhães.

Os indígenas elogiam, ainda assim, o "estrangulamento logístico" promovido pelo governo contra os garimpeiros, em especial as medidas que controlavam e bloqueavam as formas de acesso ao território. Em 30 de janeiro, o governo federal criou a Zona de Identificação de Defesa Aérea (Zida). Mas os grupos alertam que a medida se sustentou por apenas seis dias devido à pressão exercida por parlamentares de Roraima que estão associados ao garimpo ilegal.

"De 6 de fevereiro a 6 de abril, exatos dois meses, o governo fez a manutenção de três "corredores humanitários" aéreos abertos a fim de levar a uma saída espontânea dos criminosos", explicou o informe. O balanço aponta que esta medida reduziu custos das ações de combate, mas também favoreceu os "donos de garimpos" que puderam retirar parte do seu equipamento sem maiores prejuízos.

O temor é de que alguns desses "empresários" estejam esperando o enfraquecimento da fiscalização para retornar a operar no território. O relatório demonstra também como traficantes de pessoas usaram a flexibilização do controle do espaço aéreo, a partir do caso de uma adolescente que foi resgatada de um prostíbulo no rio Couto Magalhães. Pilotos de avião, barqueiros e motoristas que fizeram o transporte dos criminosos foram igualmente favorecidos com a medida, havendo relatos de que garimpeiros chegaram a pagar até R$ 15 mil pela saída.

Mesmo com o total controle do espaço aéreo e fechamento dos "corredores humanitários", há relatos de que aeronaves estão partindo da Venezuela para garimpos fronteiriços, mas que ainda estão dentro da Terra Indígena Yanomami. Parte dos invasores moveu as bases logísticas para Santa Elena de Uairén e atuam na bacia do Caura, e na cabeceira do Metacuni, próximo à comunidade Sanöma de Hokomawë.

Segundo o informe, o governo precisa aprimorar as bases de proteção em todo o território. "Desde que as ações começaram, as equipes de fiscalização estão concentradas nos rios Uraricoera e Mucajaí. Dessa forma, outros rios importantes que também dão acesso à Terra Indígena Yanomami ficaram vulneráveis, como o Catrimani, o Apiaú e o Uraricaá", destacam.

Em novembro do ano passado, uma estrada clandestina com aproximadamente 150 km de extensão foi identificada passando pelos rios Apiaú e Catrimani.
"Mesmo assim, a região não foi ainda alvo de operações", lamentam os indígenas. Os órgãos que atuam nesta fiscalização foram esvaziados durante a gestão de Bolsonaro, deixando poucos agentes para cobrir toda a área necessária. Além disso, somente em 21 de junho deste ano, quase ao fim dos primeiros seis meses de ação emergencial, o governo designou às forças armadas o papel de atuar nas ações preventivas. Antes, o Exército atuava apenas como apoio logístico.

"Caso, o envolvimento das Forças Armadas na execução de ações preventivas e repressivas dentro da TIY tivesse sido planejado desde o início, talvez tivesse sido possível ampliar a capacidade das Bapes e inclusive a planejar a instalação de novas estruturas em outros pontos estratégicos", aponta trecho do documento.

Cestas básicas: só metade foi entregue
Outro problema destacado é o fato de que cestas básicas ainda não estão chegando com regularidade e quantidade suficiente em regiões prioritárias. Em fevereiro, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) elaborou uma nota técnica estimando a necessidade de entregar 12.692 cestas de alimentos por mês para combater a fome e a desnutrição na Terra Indígena Yanomami. Dessa forma, mais de 50 mil cestas básicas seriam entregues durante o primeiro semestre. No entanto, as Forças Armadas, responsáveis pela logística, só conseguiram entregar 50% do previsto.

A constatação dos grupos é de que, com a expansão do garimpo ilegal que afeta os recursos naturais e organização econômica das famílias, somada à dessasistência sanitária e ao efeitos dos e os fenomeno climático La Niña, houve um aumento de comunidades sofrendo com a fome ainda no ano passado.

"Comunidades mais isoladas ficaram praticamente desassistidas da ajuda humanitária do governo federal. As cestas eram arremessadas no ar e a distribuição ficava concentrada em pistas de pouso com grande capacidade de armazenamento, conforme relatos dos próprios yanomami", disse.

Em Kayanau, por exemplo, onde 83% das crianças da região estavam com baixo peso ou muito baixo peso em 2022, certas comunidades ficaram desassistidas. Já em Auaris, as cestas foram estocadas no pelotão de fronteira e demoraram a ser entregues, o que fez a carne perecer.

"É importante que o atendimento com cestas básicas seja garantido com alguma periodicidade e com um cronograma acordado com as comunidades, considerando que uma cesta dura em média dez dias para uma família yanomami, e que cultivos de ciclo curto, como o milho, necessita de pelo menos 90 dias para serem colhidos", explica o relatório.

Desmatamento em queda, mas persiste
O desmatamento na maior terra indígena do Brasil se multiplicar por seis durante o governo Bolsonaro, enquanto os dados do Sistema de Monitoramento do Garimpo Ilegal, promovido pela Hutukara, indicaram que, de outubro de 2018 até dezembro de 2022, a área impactada pela atividade ilegal cresceu mais de 300%. A devastação do garimpo ilegal chegou 5053,82 hectares, o que atingiu 60% da população do território. Sob a gestão de Lula, o desmatamento perdeu ritmo. Mas continua crescendo.

"As ações do novo governo fizeram o garimpo ilegal na Terra Yanomami desacelerar, embora a devastação continue crescendo. No primeiro semestre deste ano, a área afetada pela atividade ilegal aumentou 219 hectares, o que representa 4% de incremento ao total acumulado em dezembro de 2022", indicou o documento.

"Com efeito, o que se observou na maioria das regiões foi a estabilização de grande parte das cicatrizes, com sinais de alterações recentes bastantes pontuais. Em nenhuma das regiões o incremento observado superou a ordem de 50 hectares, sendo os maiores aumentos absolutos verificados nas regiões de Kayanau, Waikás, Alto Mucajaí e Auaris, respectivamente", explica trecho do relatório.

Propostas
Na avaliação dos grupos indígenas, o governo precisa tomar medidas para conseguir lidar com a situação. O relatório ainda propõe um caminho de diálogo com as comunidades e associações e conclui com uma série de propostas para fortalecer a proteção territorial e garantir saúde.

Entre as principais medidas, o grupo sugere:
Recuperação da infraestrutura logística e de atendimento.
Aumento das equipes de saúde trabalhando no território, com aumento da frequência das visitas nas aldeias.
Aprimoramentos no sistema de vigilância epidemiológica, para encurtar o tempo de resposta entre surtos epidêmicos e tratamentos.
Recuperação do papel dos profissionais indígenas como peças-chave nas equipes de saúde.

Distribuição de cestas básicas
Desenvolvimento de planos de ação regionalizados para regiões sensíveis que combinem em um único cronograma ações de neutralização do garimpo, apoio emergencial, promoção à saúde e desenvolvimento de atividades de recuperação socioeconômica das comunidades.

Garantir a manutenção do controle do espaço aéreo por tempo indeterminado e reforçar o monitoramento nas zonas de fronteira.

Intensificação das operações de combate ao garimpo nos núcleos que ainda persistem, com a destruição total do maquinário utilizado na extração de ouro e da cassiterita e aplicação das respectivas sanções administrativas.

Inutilização de todas as pistas de pouso clandestinas e aeronaves apreendidas.

Promoção de patrulhas periódicas nas calhas de rio que dão acesso à Terra Indígena Yanomami, e destruição de equipamentos e estruturas auxiliares à logística garimpeira;
Criação de uma força tarefa especial para o combate à malária em todo o território.

Promoção de ações específicas de combate à desnutrição infantil com acompanhamento dos pacientes com déficit nutricional e implementação de um plano de combate às causas da desnutrição infantil e reforço das equipes EMSI com nutricionistas.
 
 
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