“Nós, lideranças do Papiú, gostaríamos de denunciar o retorno de garimpeiros em nossa região. Apesar das autoridades e do presidente Lula já terem limpado a floresta, os garimpeiros continuam voltando, por isso mandamos essas palavras. Apesar de existir a demarcação, eles estão voltando pelos rios. Nós queremos que vocês, de fato, retirem estes invasores”.
Seis meses após o governo federal decretar Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) na Terra Indígena Yanomami, a devastação da floresta começa a desacelerar, mas os Yanomami e Ye’kwana seguem sofrendo com os efeitos do garimpo ilegal em seu território, conforme o alerta acima, de indígena do Papiú, incluído no relatório Nós ainda estamos sofrendo: um balanço dos primeiros meses da emergência Yanomami.
Lançado nesta quarta-feira (02/08) por três organizações indígenas — Hutukara Associação Yanomami (HAY), Associação Wanasseduume Ye'kwana (SEDUUME) e Urihi Associação Yanomami —, o documento usa dados e relatos dos indígenas para fazer um balanço das ações nos últimos seis meses, ressaltando o que vem dando certo e também expondo falhas nas ações, como a ausência de uma coordenação do governo federal e problemas nas áreas de saúde, proteção territorial, desintrusão e segurança alimentar.
Ao final, o relatório propõe um caminho de diálogo com as comunidades e associações e conclui com uma série de propostas para fortalecer a proteção territorial e aprimorar os planos de recuperação sanitária das regiões mais afetadas. O relatório contou com o apoio técnico do Instituto Socioambiental (ISA) e pode ser acessado na íntegra no link.
Durante a gestão de Jair Bolsonaro, o desmatamento na maior Terra Indígena do Brasil quase sextuplicou. De acordo com os dados do Sistema de Monitoramento do Garimpo Ilegal, promovido pela Hutukara, de outubro de 2018 até dezembro de 2022 a área impactada pela atividade ilegal cresceu mais de 300%, conforme noticiado. A devastação do garimpo ilegal chegou a 5053,82 hectares, o que atingiu 60% da população do território.
As ações do novo governo fizeram o garimpo ilegal na Terra Yanomami desacelerar, embora a devastação continue crescendo. No primeiro semestre deste ano, a área afetada pela atividade ilegal aumentou 219 hectares, o que representa 4% de incremento ao total acumulado em dezembro de 2022.
“Com efeito, o que se observou na maioria das regiões foi a estabilização de grande parte das cicatrizes, com sinais de alterações recentes bastantes pontuais. Em nenhuma das regiões o incremento observado superou a ordem de 50 hectares, sendo os maiores aumentos absolutos verificados nas regiões de Kayanau, Waikás, Alto Mucajaí e Auaris, respectivamente”, explica trecho do relatório da Hutukara.
Embora o governo tenha comemorado ,em junho, o fim de alertas de garimpos na Terra Yanomami — após o monitoramento da Polícia Federal ficar 30 dias sem novos alertas — isso não significou o fim da exploração ilegal.
As chuvas que iniciam em abril e têm pico em junho, por exemplo, dificultam o sensoriamento remoto. Além disso, garimpeiros podem estar atuando em áreas que já foram desflorestadas. No mesmo mês da comemoração, a Hutukara recebeu relatos de que garimpeiros estavam se movimentando pelos rios Apiaú e Couto Magalhães.
O relatório avalia que, entre as ações do governo para alcançar a estabilização, as focadas no “estrangulamento logístico” foram as mais eficazes, especialmente as que controlavam e bloqueavam as formas de acesso ao território.
Em 30 de janeiro, o governo federal criou a Zona de Identificação de Defesa Aérea (Zida). No entanto, a medida se sustentou por apenas seis dias, devido à pressão exercida por parlamentares de Roraima que estão associados ao garimpo ilegal.
De 6 de fevereiro a 6 de abril, exatos dois meses, o governo fez a manutenção de três “corredores humanitários” aéreos abertos a fim de levar a uma saída espontânea dos criminosos. O balanço aponta que esta medida reduziu custos das ações de combate, mas também favoreceu os “donos de garimpos” que puderam retirar parte do seu equipamento sem maiores prejuízos. Segundo o relatório, há rumores de que alguns desses “empresários” estejam esperando o enfraquecimento da fiscalização para retornar a operar no território.
O relatório demonstra também como traficantes de pessoas usaram a flexibilização do controle do espaço aéreo, a partir do caso de uma adolescente que foi resgatada de um prostíbulo no rio Couto Magalhães. Pilotos de avião, barqueiros e motoristas que fizeram o transporte dos criminosos foram igualmente favorecidos com a medida, havendo relatos de que garimpeiros chegaram a pagar até R$15 mil pela saída.
Mesmo com o total controle do espaço aéreo e fechamento dos “corredores humanitários”, há relatos de que aeronaves estão partindo da Venezuela para garimpos fronteiriços, mas que ainda estão dentro da Terra Indígena Yanomami. Parte dos invasores moveu as bases logísticas para Santa Elena de Uairén e atuam na Bacia do Caura, e na cabeceira do Metacuni, próximo à comunidade Sanöma de Hokomawë.
Assim como a estratégia de “estrangulamento logístico”, o relatório da Hutukara aponta que o governo precisa aprimorar as bases de proteção em todo o território. Desde que as ações começaram, as equipes de fiscalização estão concentradas nos rios Uraricoera e Mucajaí. Dessa forma, outros rios importantes que também dão acesso à TIY ficaram vulneráveis, como o Catrimani, o Apiaú e o Uraricaá.
Em novembro do ano passado uma estrada clandestina com aproximadamente 150 km de extensão foi identificada passando pelos rios Apiaú e Catrimani. Com a rota, a logística garimpeira era facilitada pelo meio terrestre. Mas apesar disso, a região não foi ainda alvo de operações.
Os órgãos que atuam nesta fiscalização foram esvaziados durante a gestão de Bolsonaro, deixando poucos agentes para cobrir toda a área necessária. Além disso, somente em 21 de junho deste ano, quase ao fim dos primeiros seis meses de ação emergencial, o governo designou às Forças Armadas o papel de atuar nas ações preventivas. Antes, o Exército atuava apenas como apoio logístico.
“Caso, o envolvimento das Forças Armadas na execução de ações preventivas e repressivas dentro da TIY tivesse sido planejado desde o início, talvez tivesse sido possível ampliar a capacidade das Bapes e inclusive planejar a instalação de novas estruturas em outros pontos estratégicos”, aponta trecho do documento.
Durante o período de transição e início do novo governo, fotos de Yanomami doentes e desnutridos tornaram-se virais nas redes sociais e foram importantes para chamar a atenção do governo federal ao problema e dar início à Espin. No entanto, seis meses após a visita do presidente a Roraima, a Saúde ainda carece de estruturação.
Segundo apurou o relatório, há ainda muitas regiões desassistidas, enquanto em Surucucu há uma concentração de profissionais. Os polos de regiões sensíveis continuam com equipes incompletas ou com tamanho incompatível com a demanda. Há regiões que seguem dependentes de missões de saúde esporádicas, que duram sete dias e não tem prazo para serem repetidas.
Dessa forma, atendimentos que deveriam fazer parte da rotina, como pesagem de crianças, pré-natal, vermifugação e tratamento de malária, se tornam impossíveis para os Yanomami que vivem nas regiões mais remotas.
Os excessivos casos de malária ainda são um problema na Terra Indígena. De janeiro a julho de 2023, houve 12.252 casos, o que representa 80% do total registrado em 2022.
“É impossível em uma aldeia, com cem pessoas com sintoma de malária, uma equipe de duas pessoas em missão fazer qualquer outra coisa que não testar a população e tratar os mais graves”, declarou uma profissional da saúde que pediu para não ser identificada.
A solução atual tem sido remover os pacientes em estado grave para o Centro de Referência em Surucucu, que já no dia da inauguração operava com 90% da capacidade.
Embora tenham sido realizados até julho mais de oito mil atendimentos, os Yanomami se queixam que os profissionais da Força Nacional do SUS raramente se deslocam para realizar ações de saúde nas comunidades.
Por outro lado, os profissionais de saúde ainda vivem com o sentimento de insegurança devido à persistência de invasores garimpeiros no território. “Isso faz com que os os vetores de produção da crise sanitária não sejam combatidos na sua raiz”, aponta o documento.
Considerando experiências bem sucedidas na Saúde, o ideal seria criar um cronograma para realizar as estabilização aos poucos:
Em fevereiro, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) elaborou uma nota técnica estimando a necessidade de entregar 12.692 cestas de alimentos por mês para combater a fome e a desnutrição na Terra Indígena Yanomami. Dessa forma, mais de 50 mil cestas básicas seriam entregues durante o primeiro semestre. No entanto, as Forças Armadas, responsáveis pela logística, só conseguiram entregar 50% do previsto.
A fome e a desnutrição não chegam a ser problemas em todo o território Yanomami, mas com a expansão do garimpo ilegal, que afeta os recursos naturais e organização econômica das famílias, somada à desassistência sanitária e ao efeitos dos e os fenômeno climático La Niña, houve um aumento de comunidades sofrendo com estes problemas.
Comunidades mais isoladas ficaram praticamente desassistidas da ajuda humanitária do governo federal. As cestas eram arremessadas no ar e a distribuição ficava concentrada em pistas de pouso com grande capacidade de armazenamento, conforme relatos dos próprios yanomami.
Em Kayanau, por exemplo, onde 83% das crianças da região estavam com baixo peso ou muito baixo peso em 2022, certas comunidades ficaram desassistidas. Já em Auaris, as cestas foram estocadas no pelotão de fronteira e demoraram a ser entregues, o que fez a carne perecer.
“É importante que o atendimento com cestas básicas seja garantido com alguma periodicidade e com um cronograma acordado com as comunidades, considerando que uma cesta dura em média dez dias para uma família Yanomami, e que cultivos de ciclo curto, como o milho, necessitam de pelo menos 90 dias para serem colhidos”, explica o relatório.
Por fim, o relatório recomenda que para seguir com a operação de forma mais assertiva e garantir a estabilização da saúde, sensação de segurança, proteção territorial e segurança alimentar, o governo deveria considerar alguns pontos, dos quais destacamos:
“As associações Yanomami estão abertas ao diálogo com o governo sobre esta Emergência. Este assunto foi tratado no IV Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’kwana, pois nossos povos querem seguir conversando, seguimos abertos ao diálogo”, disse o diretor da Hutukara, Maurício Ye’kwana.
O IV Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’Kwana ocorreu de 10 a 14 de julho na comunidade de Maturacá, no Amazonas. O evento contou com a participação de 353, sendo mais de 200 lideranças yanomami e dezenas de representantes do governo federal. Durante os cinco dias de reunião, saúde, educação, segurança alimentar e proteção territorial foram os principais temas de uma ampla e democrática escuta do governo.