A decisão do presidente Lula (PT) de viajar a Roraima e de anunciar a intenção de combate ao garimpo ilegal na terra yanomami, em meio a uma crise humanitária dos indígenas, provocou uma corrida em diferentes ministérios de seu governo, que tinha apenas 21 dias naquele momento.
Autoridades e integrantes do alto escalão na burocracia estatal passaram a buscar formas de colocar em prática um plano de retirada dos mais de 20 mil invasores da terra indígena, que se sentiam estimulados à prática criminosa pelo discurso pró-garimpo de Jair Bolsonaro (PL), antecessor de Lula. Na visão de quem acompanhou tudo de perto, a corrida era mais para tentar amealhar algum capital político diante do novo presidente do que por caminhos viáveis para um problema hipercomplexo.
Nas discussões que passaram a ocorrer para a viabilização da desintrusão (retirada de quem não é originário do lugar), havia integrantes do governo que não sabiam nem quais são os principais rios que cortam o território.
Ficou decidido, nos âmbitos interministeriais, que as Forças Armadas dariam o pontapé inicial na desintrusão, em uma operação articulada com Polícia Federal, Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas). Um QG da operação foi improvisado na superintendência da PF em Boa Vista. Mais de duas semanas depois da visita e do discurso de Lula, nada ocorria.
Agentes envolvidos nas ações de combate ao garimpo constataram que uma iniciativa dos militares poderia levar mais um mês. Foi quando o Ibama, a partir de uma diretriz de Brasília, decidiu furar o acordo de um início conjunto da operação e colocar em prática as primeiras ações de combate aos garimpos.
O órgão ambiental, com suporte da Funai e da Força Nacional de Segurança Pública, vinculada ao Ministério da Justiça, deu início à operação em 6 de fevereiro. A divulgação oficial ocorreu no dia 8. No dia 10, Forças Armadas e PF foram a campo para destruir maquinários e aeronaves do garimpo ilegal.
A desarticulação e o bate-cabeça marcaram os primeiros meses da operação, especialmente em razão da resistência dos militares em entrarem de vez nas ações. Coordenadores de Ibama e Funai decidiram, sozinhos, improvisar um cabo de aço de margem a margem de um ponto do rio Uraricoera, em um local com alta concentração de garimpos.
A medida não foi comunicada ao Exército e é reconhecida por policiais federais como o primeiro ato exitoso da desintrusão, por ter forçado a redução de velocidade e mais abordagens de embarcações de invasores num ponto estratégico. O cabo compensou, em alguma medida, o fato de embarcações da fiscalização serem menos potentes que barcos usados por invasores.
O governo não estava confuso apenas na operação de retirada de garimpeiros. As ações de emergência em saúde pública, declarada em 20 de janeiro, começaram a ser adotadas sem coordenação e sem a liderança efetiva de algum dos órgãos envolvidos. Existia um improviso de técnicos da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) à frente desse processo.
A decisão, então, foi pela criação de um comitê -o COE (Centro de Operação de Emergências). A linha de atuação do COE foi centralizar decisões, bloquear acessos ao território que não fossem de profissionais de saúde -ainda que isso fosse de encontro ao desejo de lideranças yanomamis- e limitar a transparência. Até março, o número de óbitos na terra indígena foi omitido.
A Funai, no começo das ações de emergência, não tinha uma presidente de fato. Joenia Wapichana circulava por Boa Vista sem ter sido nomeada presidente do órgão, o que só ocorreu em 1º de fevereiro. Isso dificultava a tomada de decisões básicas pela Funai. Servidores da coordenação em Roraima acabaram escanteados.
O desencontro era claro nos discursos dos ministros de Lula. Em 4 de fevereiro, a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, disse em Boa Vista: “Temos essa informação de que muitos garimpeiros estão saindo. É bom que saiam mesmo. Melhor para todo mundo se saem sem precisar da ação da força de segurança”.
Quatro dias depois, também na capital de Roraima, o ministro da Defesa, José Mucio Monteiro, adotou tom bem mais ameno em relação ao tratamento que o governo deveria dar a invasores em fuga: “Nós temos a preocupação de não prejudicar inocentes”. Guajajara estava ao lado do ministro e modulou o discurso: “O problema é histórico e não vamos conseguir resolver isso numa semana”.
Quando houve a sinalização de Lula para retirada dos garimpeiros da terra indígena, o Ibama já tinha um plano operacional pronto. Se conseguisse transportar dois caminhões com combustíveis até a região, o órgão daria início ao plano sem os militares, conforme a decisão tomada.
Um dos caminhões foi transportado por balsa de Santarém (PA) a Manaus (AM). Depois, seguiu por terra até a região da terra indígena. Com o combustível disponível para os primeiros voos, o plano começou a ser colocado em prática.
Investigadores e agentes de fiscalização que atuam no combate ao garimpo ilegal na terra yanomami elencam situações em que as Forças Armadas optaram por não agir.
Houve negativa de tempo de voo e combustível para as ações, especialmente no começo da operação; pouca disponibilidade das aeronaves em solo, durante ações de combate à logística do garimpo; permanência em base aérea de material necessário às bases logísticas na terra indígena; falta de um controle aéreo efetivo, e resistência à destruição de equipamentos da mineração ilegal.
“Não houve negativa de apoio logístico”, disse o Ministério da Defesa, em nota. “A operação transcorre sob intenso esforço logístico, uma vez que, em virtude da grande extensão da área, foram estabelecidos postos de combustível nas localidades de Palimiú, Surucucu e Amajari”, afirmou na ocasião.
Aeronaves das Forças Armadas, do Ibama e da PF eram constantemente abastecidas, segundo o ministério. No caso das aeronaves militares, já tinha havido 6.900 horas de voo e consumo de 4,5 milhões de litros de combustível, afirmou a Defesa.
Os riscos em ações de desintrusão onde pode haver confronto, inclusive com uso de armas de fogo, exigiam uma “pronta resposta” de aeronaves e tripulação, conforme a pasta, o que explicaria a baixa disponibilidade em solo. “Tal procedimento visa a garantir a efetividade da ação, caso os suspeitos empreendam fuga.”
O ministério afirmou ainda que as missões das Forças Armadas deveriam ser acompanhadas sempre de Ibama e PF, cujos agentes têm a competência de destruição de maquinário ilegal.
“Não houve recusa em carregar as aeronaves para apoio logístico”, disse a Defesa. Segundo a pasta, a operação resultou na prisão de 146 garimpeiros; apreensão de 808 equipamentos, 40 toneladas de cassiterita e 1.675 gramas de ouro; e na “neutralização” de acampamentos ilícitos.
Passados oito meses do início das ações de emergência na terra yanomami, os problemas persistem.
Os indígenas passaram a contar com uma assistência em saúde que não existia, com 870 profissionais envolvidos; a maior parte dos invasores foi retirada; e as áreas garimpadas diminuíram 78,5% em 2023, segundo a Defesa. Mas o garimpo ilegal e as doenças associadas a ele prosseguem.
Monitoramentos feitos pela PF mostram a resiliência e até mesmo o retorno de estruturas de garimpo nos rios Uraricoera, Mucajaí e Couto Magalhães. Na região de Auaris, já próxima da fronteira com a Venezuela, os garimpos permanecem, com fugas constantes de invasores para o território venezuelano, segundo policiais federais.
É comum a exploração de ouro à noite, e o retorno de máquinas após a destruição de equipamentos. Em um ponto, por exemplo, a PF destruiu 29 motores. Quando retornou à área, já havia 12 motores novos.
O último boletim divulgado pelo COE, de 25 de agosto, registra 190 mortes de yanomamis e indígenas de outras etnias no território ao longo de 2023. Quase a metade, 93, eram crianças de 0 a 4 anos. Pneumonia, desnutrição, malária e diarreia foram as principais causas dos óbitos. O relatório aponta ainda 15,9 mil casos de malária e 6.100 de diarreia aguda na terra indígena neste ano.
Apenas uma ocupação constante, com pontos permanentes de fiscalização, garantirá o êxito da operação na terra yanomami, segundo agentes que atuam na linha de frente. Se as forças de segurança se ausentarem, os garimpeiros retornam no dia seguinte, dizem esses agentes.