14/02/2024 às 10h44min - Atualizada em 14/02/2024 às 10h44min

DITADURA: Desaparecimento forçado de opositores, o modus-operandi cruel de Nicolás Maduro na Venezuela

Detida na sexta, a ativista Rocío San Miguel ficou dias desaparecida antes dos advogados descobrirem que ela ficará detida na prisão do serviço de inteligência bolivariano

A prisão El Helicoide, em Caracas, na Venezuela — Foto: Yuri Cortez / AFP
A detenção da ativista, diretora da ONG Controle Cidadão e especialista em questões militares venezuelana Rocío San Miguel, sexta-feira passada, aprofundou a preocupação de ONGs de defesa dos Direitos Humanos locais e da Missão Internacional Independente de Investigação sobre a República Bolivariana da Venezuela, que funciona desde 2020 no âmbito das Nações Unidas, sobre a prática do que especialistas chamam de “desaparecimento forçado” de opositores do governo Nicolás Maduro.

Rocío San Miguel, acusada de “traição à pátria”, “terrorismo” e “conspiração” pelo governo vai permanecer detida na prisão do serviço de inteligência bolivariano, El Helicoide, informaram seus advogados nesta quarta-feira. Antes disso, porém, ela havia passado dias desaparecida. Assim como fizeram as ditaduras sul-americanas nas décadas de 1970 e 1980, o governo venezuelano detém críticos e adversários e, por horas, dias, semanas ou até mesmo meses, o local para onde são levadas essas pessoas não é confirmado.

Nesta quarta-feira, os ex-chefes de Estado e governo que integram a Iniciativa Democrática da Espanha e das Américas (Idea), emitiram uma declaração afirmando que "o regime ditatorial de Nicolás Maduro ataca, (...) por meio da prática de desaparições forçadas, contra qualquer um que se oponha a ele". O grupo condenou os atos do governo e disse que alerta "urgentemente a opinião pública e a comunidade internacional interamericana".

 
"Estes são, sem dúvida, desvios do comportamento humano e político que lembram as experiências totalitárias que envergonharam a Humanidade no meio do século XX. Tais atos não são atenuados pelas declarações de que as vítimas serão apresentadas à Justiça, enquanto seus advogados e familiares desconhecem e não são informados sobre o paradeiro das mesmas", ressaltou.

Ao GLOBO, Marino Alvarado, da ONG Provea, criada há mais de 35 anos, disse que o desaparecimento forçado de presos políticos está institucionalizado no país.

Diferentemente de ditaduras de outros tempos, na Venezuela o desaparecimento de pessoas raramente termina com sua morte, mas temos casos de pessoas que estão desaparecidas desde 2015, como Alcedo Mora, um ativista social — diz Alvarado, que confessa saber que, se algum dia for preso, será alvo de um desaparecimento forçado:

Eu serei um desaparecido, porque essa é a prática sistemática contra advogados que defendemos os direitos humanos e opositores políticos.
Na visão de Alvarado, que apesar das ameaças permanentes continua trabalhando dentro de seu país, a repressão recrudesceu na Venezuela porque “o governo Maduro perdeu apoio de setores populares e sabe que se perder a eleição presidencial de 2024 os riscos são altos”
.

— Teremos um ano de forte repressão, isso está apenas começando. Que o mundo saiba que o governo Maduro, que se diz de esquerda, está prendendo até mesmo sindicalistas que organizam greves, como fez o presidente Lula — frisa o ativista.

O advogado de uma das ONGs mais atuante na defesa de presos políticos venezuelanos explicou, com a condição de não ser identificado, que na grande maioria das mais de 15 mil detenções políticas realizadas pelo governo Maduro desde 2014 houve desaparecimentos forçados. Para este advogado, o desaparecimento forçado é um padrão de atuação das forças militares e de segurança da Venezuela, sobretudo do Serviço Bolivariano de Inteligência (Sebin).

Uma vez que a pessoa é presa, acrescenta a fonte, ela fica um período totalmente desaparecida, e esse período é crítico já que são os momentos nos quais, segundo investigações de ONGs locais, os detidos são torturados, obrigados a gravar vídeos admitindo crimes que em muitos casos não cometeram e dar nomes de supostos colaboradores em supostos planos contra o governo.

O desaparecido forçado de opositores é um dos crimes que a Corte Internacional de Haia está investigando, no caso sobre a Venezuela. O Estatuto de Roma, que em 1998 determinou a criação da Corte Internacional com sede em Haia, define o desaparecimento forçado de pessoas como um crime de lesa-Humanidade.

Mesmo com evidências cada vez mais contundentes contra o governo de Maduro, fontes oficiais venezuelanas afirmaram que as informações divulgadas por ONGs fazem parte de uma “matriz que busca construir a imagem de que a Venezuela viola os direitos humanos”. Segundo essa fonte, não existe desaparecimento forçado em seu país.

O caso de San Miguel é emblemático. Além de San Miguel, uma das maiores especialistas em temas militares da Venezuela, que denunciou recentemente a expulsão de mais de 30 militares da Força Armada Nacional Bolivariana (FANB) por suposto envolvimento em conspirações contra Maduro, foram presos sua filha, Miranda, seu irmão, Miguel Angel San Miguel Quigosos, o pai de sua filha, Victor Díaz Paruta, e outro familiar identificado como Alejandro González Canales. Eles foram libertados um dia antes, com a condição de se apresentarem à Justiça periodicamente, proibição de sair do país e de falar com a imprensa. Todos os que continuam presos sofreram, segundo ONGs de defesa dos direitos humanos, um desaparecimento forçado.

— Rocío não é uma opositora radical, é uma pessoa seria e respeitada. Mas o mundo militar é uma questão sensível para este governo, e ela tem acesso a muita informação. Seu desaparecimento forçado é mais um caso, já temos muitos — explica o jornalista Xabier Coscojuela.
Segundo ele, "desaparecimentos forçados são frequentes na Venezuela”.

— Desde os protestos de 2017, os casos se multiplicaram. Lembro do filho de um prefeito opositor que, naquela época de muitas manifestações contra o governo, ficou mais de um ano preso e bastante tempo desaparecido — comenta o jornalista.

Nesta terça-feira, ONGs locais denunciaram o desaparecimento forçado de uma pessoa identificada como Carlos Salazar. Se trata de um engenheiro aposentado da estatal Petróleos da Venezuela (PDVSA), que divulgou um vídeo no qual aparece o empresário Alex Saab, vinculado ao governo de Maduro e deportado recentemente pelos Estados Unidos, onde estava preso. No vídeo, o engenheiro aposentado, agora preso e cujo paradeiro é desconhecido por sua família, faz críticas a Saab.

Desde que o presidente Maduro lançou, há três semanas, o programa Fúria Bolivariana, apresentado como um plano de controle social comandado por militares, policiais e pelo poder civil, a perseguição a opositores se intensificou. Segundo o advogado consultado, nos próximos tempos, o governo ordenará prisões muito específicas, de lideranças da sociedade civil, políticos e pessoas que considere uma ameaça ao governo de Maduro, aplicando o já enraizado modus operandi dos desaparecimentos forçados.

Ao impedir o acesso de advogados e familiares aos presos políticos, o governo e os tribunais — que atuam em total alinhamento — impõem aos detidos um defensor público. Os presos são levados para prestar depoimento sem conhecimento de seus advogados particulares, que em muitos casos, como o de San Miguel, não podem atuar na defesa de seus clientes.

Este padrão de comportamento do governo Maduro está detalhadamente explicado pela missão da ONU, que nesta terça-feira se pronunciou sobre o caso da ativista venezuelana. "A missão internacional independente de investigação sobre a República Bolivariana da Venezuela expressou sua profunda preocupação com a situação de um defensor dos direitos humanos detido pelas autoridades na sexta-feira, e instou o Governo a pôr fim à a onda de repressão contra opositores que se intensifica em todo o país”, disse a missão, e comunicado oficial.

— Estes não são incidentes isolados, mas sim uma série de eventos que parecem fazer parte de um plano coordenado para silenciar os críticos e aqueles considerados oponentes — afirmou Marta Valiñas, presidente da Missão de Apuração de Fatos.

— O governo da Venezuela deve fornecer informação sobre o paradeiro não só de San Miguel e sua filha, mas de todos os detidos cujos locais de detenção ainda são desconhecidos — acrescentou a presidente da missão.

Já Francisco Cox, membro da missão, assegurou que "o Estado venezuelano violou os direitos humanos de dezenas de pessoas ao investigar supostos grupos conspiratórios, privando os investigados, detidos e processados dos seus direitos mais básicos”.

Patricia Tappatá, também membro da comissão, apontou que “de acordo com a Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas, da qual a Venezuela é parte, um dos elementos constitutivos dos desaparecimentos forçados é a negação de informação sobre o paradeiro da pessoa, o que impede o exercício de recursos legais. e as garantias processuais pertinentes
”.
 

Com agências internacionais
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