Empreiteira da Lava Jato comprou madeira de empresa autuada por trabalho escravo em Roraima

Empreiteira Nova Engevix e Brasil BioFuels (BBF), parceiras na construção de termelétrica movida a óleo de palma e biomassa em Roraima, adquiriram produtos da Madeireira Roraima, que figurou por dois anos na ‘lista suja’ do governo federal por ter submetido trabalhadores em condições análogas à escravidão

- Conteúdo: Repórter Brasil
05/11/2024 07h49 - Atualizado há 2 meses
Empreiteira da Lava Jato comprou madeira de empresa autuada por trabalho escravo em Roraima
Agentes da Polícia Federal em ação nos galpões da empresa que está situada no sul de Roraima. Foto: Repórter Brasil

A EMPREITEIRA Nova Engevix e a BBF (Brasil BioFuels), empresa de grande porte que atua na produção de biodiesel a partir do óleo de palma, compraram produtos derivados de madeira de uma serraria que submeteu seis trabalhadores a condições análogas à escravidão em 2019.

As duas primeiras companhias foram parceiras na construção da usina termelétrica Baliza (UTE Baliza), em São João da Baliza (RoraimaR), criada para produzir energia a partir de fontes renováveis. 

Os seis empregados foram resgatados em fevereiro de 2019 após uma fiscalização do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) na Fazenda Estrela ZII, localizada no mesmo município de Roraima. Eles realizavam a derrubada de árvores nativas e, com trator, o arraste das toras até o local de carregamento em caminhões.

A extração de madeira era realizada pela Madeireira Roraima, que foi responsabilizada como empregadora da mão de obra. Por conta do caso, a empresa foi incluída na Lista Suja do trabalho escravo em outubro de 2022. A companhia esteve na lista por dois anos até a mais nova atualização, no último 7 de outubro. 

A Nova Engevix ficou nacionalmente conhecida porque era uma das empresas investigadas pela operação Lava Jato. A companhia era citada por supostamente pagar propina ao ex-ministro da Casa Civil José Dirceu. No dia 29 de outubro, o ministro Gilmar Mendes, do STF (Supremo Tribunal Federal), determinou a anulação de todas as condenações de Dirceu no âmbito da operação Lava Jato. 

Lista Suja

Atualizada semestralmente, a Lista Suja é um cadastro mantido pelo MTE que torna públicos os dados de pessoas físicas e jurídicas responsabilizadas administrativamente pelo crime de submissão de trabalhadores à condição análoga à escravidão. Dois anos é o período previsto para que um empregador, flagrado pelo crime, permaneça no cadastro, segundo a legislação. 

Os pertences dos trabalhadores ficavam espalhados pelo chão do alojamento dos trabalhadores resgatados em São João da Baliza (RR) durante a extração de madeira (Foto: Reprodução/MTE)

Os pertences dos trabalhadores ficavam espalhados pelo chão do alojamento dos trabalhadores resgatados em São João da Baliza (RR) durante a extração de madeira (Foto: Reprodução/MTE)

 

Diversas empresas brasileiras se comprometem publicamente a restringir relações comerciais com empregadores inseridos na Lista Suja. A BBF adquiriu da Madeireira Roraima sarrafos e resíduos florestais entre outubro de 2022 e outubro de 2023, quando a empresa já havia ingressado no cadastro.

Já a subsidiária da Nova Engevix em São João da Baliza comprou diversos lotes de ripas, sarrafos e madeira serrada entre novembro de 2021 e maio de 2022 – ou seja, após o flagrante de trabalho escravo, mas antes da entrada na lista.

Questionada pela reportagem, a BBF afirma que em 3 de agosto de 2022 firmou um contrato com a Madeireira Roraima para a aquisição de biomassa – conhecida como pó de serra – para utilização na caldeira de geração de vapor de sua fábrica em São João da Baliza. 

“Como de praxe, em todos os contratos celebrados pelo Grupo BBF, é parte integrante e fundamental a cláusula 2.4 que obriga o fornecedor a não utilizar na execução do contrato mão de obra em condição análoga à escravidão”, diz a nota. 

Ainda segundo a BBF, o fato de o acordo ter sido fechado antes da entrada da madeireira na lista suja do trabalho escravo [em 5 de outubro de 2022] fez com que esta estivesse apta na checagem de fornecedores realizada pela companhia de biodiesel.

O contrato, portanto, não foi reincidido, pois, durante sua vigência, até 2024, “não houve a implicação de novos casos de trabalho análogo à escravidão relacionados a este fornecedor que tenham sido divulgados”, diz a resposta enviada à reportagem. A nota completa pode ser lida aqui.

A Nova Participações, grupo que controla a Nova Engevix, respondeu que “a última relação comercial com a Madeireira Roraima foi em maio de 2022, sendo excluída da lista de fornecedores assim que as denúncias citadas vieram a público”. Disse também que não “compactua” com qualquer atividade ilícita praticada por seus fornecedores e que tem como um dos valores o “respeito incondicional aos direitos dos trabalhadores”. Veja a nota completa aqui.

A UTE Baliza, “primeira usina híbrida a combinar óleo vegetal e biomassa”, entrou em operação em 2023. A BBF afirma que seu modelo de produção evita a emissão de milhares de toneladas de carbono anualmente na atmosfera. Segundo a empresa, foram empregados consideráveis esforços para que a usina influenciasse positivamente os municípios diretamente afetados

Condições degradantes

Segundo o relatório de fiscalização do MTE, acessado pela reportagem, os seis trabalhadores resgatados “estavam submetidos a situações de vida e trabalho que aviltavam a dignidade humana e caracterizavam condição degradante de trabalho”, critério suficiente para configurar a relação trabalhista como exploração de trabalho análogo à escravidão. 

O alojamento e área de vivência dos empregados era um barraco improvisado de aproximadamente 13×4 metros, chão de terra batida, com cobertura de lona plástica e aberto nas laterais. Portanto, o local não tinha isolamento contra intempéries, animais peçonhentos, insetos ou outros animais. 

O lugar de preparo das refeições era contíguo ao barraco, e não havia água limpa para a lavagem de mantimentos e utensílios domésticos. Não havia energia elétrica ou gerador, e os alimentos eram guardados em três caixas de isopor. A água para beber, cozinhar, lavar louça e tomar banho era retirada de cacimbas – buracos no chão – feitas pelos próprios trabalhadores, e apresentava coloração esbranquiçada. 

Cacimba (buraco no chão) feita pelos próprios trabalhadores para obter água para beber, comer, lavar a louça e tomar banho (Foto: Reprodução/MTE)

Cacimba (buraco no chão) feita pelos próprios trabalhadores para obter água para beber, comer, lavar a louça e tomar banho (Foto: Reprodução/MTE)

 

Também não havia banheiros ou locais adequados para banho. Os empregados utilizavam vasilhas com água para se lavar. “Não havendo sanitários, os trabalhadores tinham que usar o ‘mato’ próximo ao barraco para satisfazerem suas necessidades fisiológicas, sem qualquer privacidade e dignidade”, diz o relatório do MTE. 

Além disso, a fiscalização constatou que não havia fornecimento de EPIs (equipamentos de proteção individual ) e que a jornada dos empregados da Madeireira Roraima era em geral por 12 dias ininterruptos. Após esse período, iam até Rorainópolis (RR) – a cerca de 90 km de distância -, onde os pagamentos eram feitos. 

“Ou seja, [os trabalhadores resgatados] laboravam de segunda-feira até a sexta-feira da semana seguinte, inclusive aos sábados e domingos, e depois folgavam no sábado e domingo da segunda semana de trabalho, retornando ao trabalho na segunda-feira seguinte. Todos declararam que recebiam apenas os dias que eram trabalhados, informação corroborada pelo próprio empregador”, afirma o relatório de fiscalização.

A Madeireira Roraima, além disso, tem um histórico de multas por desrespeitar a legislação ambiental. Entre 2018 e 2020, por exemplo, a empresa foi autuada ao menos 12 vezes pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). 

Os valores das multas, somados, chegam a aproximadamente R$ 130 mil. Em fevereiro de 2019, a madeireira teve suas atividades embargadas pelo órgão ambiental após a constatação de que ela havia apresentado informações falsas nos sistemas de controle ambiental para o comércio de produtos florestais. No ano seguinte, a empresa voltou a funcionar após obter uma liminar judicial.

Procurada pela reportagem, a Madeireira Roraima não comentou o caso. O espaço segue aberto para futuras manifestações.

Disputa fundiária com comunidades

A BBF foi fundada em 2008 em São João da Baliza “com o objetivo de descarbonizar a região Amazônica e mudar a matriz energética da região Norte do Brasil”, diz seu site.  

Além do plantio e produção do óleo de palma, a empresa possui 25 UTEs (usinas termelétricas) na região Norte do Brasil e planos para se tornar a primeira companhia brasileira a produzir combustível de avião a partir do dendê.

Cercados por plantações de dendê, fruto que dá origem ao óleo de palma, moradores dos quilombos Nova Betel, Alto Acará Amarqualta e da terra indígena Turé Mariquita afirmam vivenciar uma situação de conflito fundiário desde que a BBF se instalou na região, situada a 200 km da capital Belém. 

Reportagem da Repórter Brasil de agosto de 2022 mostrou que quilombolas e indígenas reivindicam territórios aos quais os cultivos estão sobrepostos. Como reação às ocupações realizadas pelas comunidades, forças policiais e de segurança privada da empresa têm sido acusadas de atuar com violência extrema.

Em resposta à reportagem na época, a BBF afirmou que “não existe sobreposição de áreas com os territórios das comunidades tradicionais”, negou ter cometido qualquer violência contra quilombolas e indígenas, e os acusou de invadir suas terras para roubar o dendê.

Em agosto de 2023, três indígenas da etnia Tembé foram baleados em Tomé-Açu (PA). Representantes da Associação Indígena Tembé Vale do Acará acusaram a PM de intervir de forma truculenta na comunidade, “acompanhada de seguranças fortemente armados da empresa Brasil BioFuels (BBF)”.

Em nota, a BBF afirmou na ocasião que sua equipe de segurança havia agido para “conter a ação criminosa” de “30 invasores armados” que tinham entrado na sede da empresa.


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