"Em meio às prioridades assumidas pelos missionários estava a defesa das terras indígenas e a denúncia das violações de toda ordem contra as comunidades originárias", escreve Gabriel Vilardi, jesuíta; bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP - São Paulo/SP) e bacharel em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE - Belo Horizonte/MG). Membro da Pastoral Indigenista da Diocese de Roraima, onde vive com os povos Wapichana e Macuxi, na Região Serra da Lua.
Eis o artigo.
Neste mês celebra-se os três anos da páscoa do grande bispo de Roraima, Dom Aldo Mongiano (01/11/1919 – 15/04/2020). Também nesse período as organizações indígenas convocam o Abril Indígena, tempo de aprofundar a reflexão e a luta pelos direitos sistematicamente violados. Oportunidade propícia para fazer memória do compromisso histórico da Diocese de Roraima e seus pastores com a causa dos Povos Indígenas. Apesar de ter sido um dos maiores aliados dessa luta, o missionário da Consolata seguramente não esteve sozinho. Ao contrário, é mais um de uma frutuosa tradição missionária que marca a caminhada dessa porção do Povo de Deus.
São inúmeros os exemplos de fidelidade ao Evangelho dados ao longo de sua história pelos membros da diocese, sejam padres e religiosas, leigos e leigas e seus próprios bispos, inclusive. Vale frisar que dois de seus pastores foram presidentes do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), entidade ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e que se tornou uma grande aliada do movimento indígena. O primeiro foi Dom Aparecido José Dias (1996-2004), seguido pelo seu sucessor Dom Roque Paloschi (2005-2015). Homens absolutamente sensíveis à causa indígena!
Com o absoluto comprometimento de uma elite político-econômica contrária aos indígenas, bem como em face da cooptação das forças governamentais por esses interesses, os habitantes originários de Roraima encontraram acolhida e proteção junto aos missionários e missionárias indigenistas. Ciente de sua missão, a Igreja não lhes rejeitou e por isso arcou com um alto preço que incluiu sucessivas ondas de ameaças e perseguições, violentas campanhas difamatórias e orquestrados esvaziamentos de suas comunidades eclesiais.
Desde a sua gênese a formação da sociedade local está baseada na expulsão das populações indígenas de seus territórios e na alta concentração de terras nas mãos de poucas famílias. Isso significou a gestação de inúmeras tensões que se prolongam até os dias atuais. Afinal, como atestam os estudiosos, “a região do Rio Branco foi marcada pela violência, cuja origem, (...) era decorrente do tipo de estrutura fundiária que se estabelecia” [1]. A consolidação dos latifúndios baseados na pecuária extensiva, com a forte exploração da mão de obra indígena moldou uma sociedade coronelista:
“Houve, por sua vez, um aumento gradativo do número de criatórios na virada do século passado que encetou a eclosão de conflitos entre os grupos oligárquicos que lutavam pelo domínio da região, resultando no estabelecimento de uma estrutura social do tipo coronelista. [...] O tráfico de influência que ia desde o coronelato ao poder central garantia a impunidade de crimes fiscais e outros delitos necessários à manutenção da estrutura de poder” [2].
As tensões entre a Igreja de Roraima e parte da elite agrária remontam a pelo menos o início do século XX, com a chegada dos monges beneditinos. Ligada à Abadia do Rio de Janeiro e não tendo se submetido ao poder político das oligarquias dominantes, a missão religiosa representava uma força independente com capacidade de influenciar mentes e corações e, portanto, ameaçar a ordem vigente. As reações das famílias que controlavam a região foram imediatas e os religiosos tiveram que se afastar da cidade de Boa Vista, por algum tempo.
Passados mais de sessentas e cinco anos da chegada dos monges e mudados os personagens, as preocupações dos senhores locais permaneciam as mesmas, como se depreende do relato de Dom Mongiano: “a acolhida que o Governador me reservou foi bastante fria, pois me perguntou se, por acaso, eu tinha vindo a Roraima para a ‘libertação dos índios’” [3]. Uma constatação, diga-se de passagem, bastante reveladora das injustiças que recaíam sobre os Povos Indígenas.
Em uma determinada perspectiva, o medo do governador era compreensível. Afinal, a missão da Igreja é exatamente esta: anunciar a Boa Nova da libertação aos oprimidos. Nesse sentido, a diocese sempre esteve em consonância com a melhor tradição de uma Igreja comprometida com os marginalizados e explorados na Amazônia. Inúmeros foram os mártires que tombaram por se colocarem no meio do caminho dos saqueadores da região, tais como a Ir. Cleusa Rody (1985), o Padre Ezequiel Ramin (1985) e a Ir. Dorothy Stang (2005).
Os ventos de profecia nunca deixaram de soprar por estas bandas. Como assumiram os bispos, no Encontro de Santarém, em 1972, a fé cristã deve estar “implicada em tudo aquilo que atinge a dignidade e a liberdade da pessoa humana e da família” (Doc. Santarém, n. 10). Cinquenta anos depois foi preciso reafirmar o modelo de cristianismo que brota da adesão pessoal ao Crucificado-Ressuscitado:
“Diante desse cenário, a Igreja na Amazônia tem um papel histórico: a partir de sua capilaridade, sua capacidade de articulação e atuação regional, fiel ao seu processo de encarnação e libertação, ela é chamada urgentemente a promover uma trégua relativamente a essas agressões e a proporcionar uma pacificação nos territórios. Essa Igreja, que buscou se consolidar a partir do Concílio Vaticano II acolhido em Santarém em 1972 e que se compreende como discípula-missionária, servidora da vida, testemunha do diálogo e irmã da criação, não pode omitir-se diante da convocação e do apelo que o tempo presente lhe impõe. Renova-se o apelo: ‘Cristo aponta para a Amazônia’, e a mão que aponta é a mão de um Crucificado ressuscitado” (Documento de Santarém, n. 23).
O grande bispo italiano percebeu que para ser fiel ao seguimento de Jesus, nessas terras de Makunaima, era imprescindível romper com toda perspectiva ingênua e alienada dos problemas sociais que afligiam o povo que lhe havia sido confiado. Qualquer outra visão cristã adocicada e descomprometida com essas questões seria no mínimo incoerente e hipocritamente inaceitável. Impunha-se como imprescindível e inadiável enfrentar as escandalosas doenças das injustiças estruturais, como o racismo, a grilagem das terras, o trabalho em condições análogas à escravidão:
“A visão daquele mundo e dos problemas começava a aparecer-me com clareza. A ilusão inicial de serenidade e harmonia tinha durado muito pouco. Tomava lentamente consciência de uma situação social preocupante, que não era logo visível aos olhos de quem, como eu, era novato naquele contexto, mas que era aceita e vivida pela população local como natural. Aquilo que aparecia com força diante de mim era o problema indígena e me convencia de que devíamos curar o doente mais grave” [4].
Para tanto era preciso assumir uma posição, ainda que isso significasse se indispor com uma parcela da população. Parte dela, apesar de minoritária, era extremamente poderosa e influente em múltiplos aspectos, com alta capacidade de manipulação de setores consideráveis da sociedade. Donos do capital e dos meios de comunicação controlavam as narrativas que imperavam nos círculos locais.
Falácias desgastadas e irrazoáveis encontraram acolhida no imaginário popular, como as ideias de que os indígenas eram “preguiçosos”, “tinham muita terra” e “impediam o desenvolvimento nacional”. O apagamento identitário possuía tanta força que os povos habitantes do bioma do lavrado sequer eram considerados mais indígenas, mas meros “caboclos”. Diante desse cenário, a invejável lucidez de Dom Aldo foi um farol que ajudou a aprofundar o testemunho da Igreja roraimense:
“Minha visão da sociedade roraimense, na sua globalidade, fazia-se cada vez mais nítida: uma faixa restrita de povo, formada por gente de posses, que vivia no bem estar: a classe dos funcionários públicos e dos comerciantes; e a outra faixa, bem maior, sempre mais pobre e submissa. Esta compreendia os índios portadores de uma cultura diferente, e, por isso, vítimas do preconceito das outras classes sociais” [5].
Consciente da complexidade da realidade indígena, em meio a uma grande diversidade de povos e culturas existentes no estado, a diocese buscou avançar para águas mais profundas. Em julho de 1978, por sugestão do bispo dominicano Dom Tomás Balduíno, realizou-se um curso de indigenismo, sob a assessoria do missionário jesuíta, o Padre Bartomeu Melià, SJ, grande amigo dos Povos Guarani.
Ao final do encontro, os agentes de pastoral aprovaram um documento chamado “Sobre a realidade indígena de Roraima”, um verdadeiro marco na caminhada eclesial. Fazia-se, assim, a nível diocesano, a opção preferencial pelos Povos Indígenas, reconhecidos como os “mais pobres entre os pobres”. Em meio às prioridades assumidas pelos missionários estava a defesa das terras indígenas e a denúncia das violações de toda ordem contra as comunidades originárias.
Desde então, todos os planos pastorais, construídos pelas assembleias diocesanas e aprovados pelos bispos de cada época, jamais deixaram de renovar esse compromisso com a vida dos Povos Indígenas. Uma outra postura teria sido muito difícil de compreender, considerando a relevância da presença indígena na diocese e o alto grau de exploração e assédio histórico a que foram submetidos, dos primeiros períodos de colonização até os dias atuais. Em que pese as muitas acusações de desvios e até de heresias, a Igreja particular soube ler os sinais dos tempos e ser fiel ao seu Ensino Social, como reconheceram os bispos da Amazônia recentemente:
“A luta pelo direito dos mais pobres, dos povos nativos, dos últimos (cf. QA, n. 7) torna-se um imperativo para a Igreja, que não pode estar pouco comprometida, chamada a escutar os clamores do povo e exercer com transparência seu papel profético (cf. QA, n. 19). Na história da Igreja na Amazônia, essa postura sempre permeou as suas opções fundamentais e quando, em tempos recentes, se escuta um clamor para resgatar a profecia, reconhecemos que nem sempre algumas de nossas igrejas particulares percorreram esse caminho” (Documento de Santarém, n. 29).
Sem assumirem atitudes raivosas ou segregadoras, os pastores de Roraima não se mantiveram alheios aos conflitos locais. Como não poderia deixar de ser, compreenderam que seu ministério passava por estar a serviço dos pequenos e silenciados pela ganância humana. Quando confrontados por interesses outros permaneceram ao lado dos injustiçados, denunciando as situações de opressão, a exemplo do próprio Jesus de Nazaré. Nesse sentido, apesar de atacados por toda sorte de falsas acusações, mantiveram-se firmes na defesa do Reino de Paz, Justiça e Igualdade anunciado pelo Evangelho, como testemunha Dom Aldo, em seu livro de memórias:
“O Bispo, de fato, é para todos, embora tenha que dar maior atenção aos mais fracos. Embora concentrando o empenho no problema indígena, existia em Roraima uma Igreja viva, corajosa, aberta para todos e bem estruturada, mas pobre, perseguida e profética” [6].
Aproxima-se a comemoração dos trezentos anos de evangelização, a partir da chegada dos frades carmelitas, em 1725. Celebrar esse jubileu, significa uma oportunidade para fazer memória agradecida pela coragem e fidelidade do Povo de Deus que não se eximiu de sua vocação batismal de se colocar ao lado dos empobrecidos e perseguidos. Ocasião também para pedir perdão por todas as vezes que os preconceitos, as ambições e as violências falaram mais forte que a Boa Nova de Jesus. Nessa esteira, o ensinamento do Papa Franciso, sobre o chamado à santidade de todo cristão, revela-se bastante propício para um aprofundado exame de consciência pessoal e comunitário:
“Mas é nocivo e ideológico também o erro das pessoas que vivem suspeitando do compromisso social dos outros, considerando-o algo de superficial, mundano, secularizado, imanentista, comunista, populista; ou então relativizam-no como se houvesse outras coisas mais importantes, como se interessasse apenas uma determinada ética ou um arrazoado que eles defendem. (...) igualmente sagrada é a vida dos pobres que já nasceram e se debatem na miséria, no abandono, na exclusão, no tráfico de pessoas, na eutanásia encoberta de doentes e idosos privados de cuidados, nas novas formas de escravatura, e em todas as formas de descarte. Não podemos propor-nos um ideal de santidade que ignore a injustiça deste mundo, onde alguns festejam, gastam folgadamente e reduzem a sua vida às novidades do consumo, ao mesmo tempo que outros se limitam a olhar de fora enquanto a sua vida passa e termina miseravelmente” (Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate, n. 101).
Fortalecido pela recente chegada de um novo pastor, possa o Povo de Deus em Roraima renovar e aprofundar o seu seguimento de Jesus, que se traduz no compromisso com os Povos Indígenas e com uma Igreja sempre a favor dos espoliados deste mundo. Como alertam as Escrituras “esse é o tempo favorável” (2 Cor 6, 1-2), em que o Senhor da Vida “está a porta e bate” (Ap 3, 20). Saberão os cristãos ouvi-Lo e reconhece-Lo no rosto indígena, ainda tão crucificado pelo pecado social? Ou se fecharão em velhos ressentimentos, frutos do egoísmo e de interesses mesquinhos? Que se possa acolher, com um renovado frescor e intenso ânimo, a voz do Mestre que, apesar dos constantes vacilos de seus discípulos, insiste com esperança: coragem, não tenham medo!