09/01/2025 às 17h46min - Atualizada em 09/01/2025 às 17h46min
PACARAIMA: Com aval de militares brasileiros, Brasil vendeu spray de pimenta à Venezuela
Brasil exportou 20 mil frascos de spray de pimenta à Venezuela, de acordo com dados do governo federal. Produto é normalmente usado por forças de segurança para conter protestos. Exportação aconteceu às vésperas das eleições presidenciais de julho deste ano
Encravada na fronteira entre o Brasil e a Venezuela, a cidade brasileira de Pacaraima, com pouco mais de 18 mil habitantes, virou a primeira parada para milhares de imigrantes venezuelanos que fogem da crise econômica e da repressão política do regime de Nicolás Maduro. Sem alarde, enquanto a Venezuela se preparava para as eleições presidenciais que poderiam colocar um fim a 11 anos de chavismo, a cidade se transformou, também, na última parada de uma carga particularmente importante para o governo de Maduro.
Dados obtidos com exclusividade pela BBC News Brasil apontam que foi por lá que passaram pelo menos dois carregamentos que, somados, totalizam 20 mil frascos de spray de pimenta exportados pelo Brasil ao país vizinho. O produto é comumente utilizado por forças de segurança de todo o mundo para controlar protestos como os que foram realizados no país após a contestada declaração de vitória de Maduro para mais um mandato.
De acordo com um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), os protestos foram respondidos com detenções arbitrárias e diversas violações de direitos humanos. Em comunicado sobre o assunto, o governo da Venezuela rejeitou "categoricamente" as alegações do documento e classificou o relatório como "vulgar" e "panfletário", elaborado para cumprir ordens do governo norte-americano.
A venda chama atenção porque a sua exportação teve o aval do Ministério da Defesa e do Exército Brasileiro, apesar de ter sido registrada em um momento em que a comunidade internacional e até mesmo o Brasil já tinham dado demonstrações de preocupação com relação ao tratamento dado pelo regime de Maduro à oposição venezuelana. Procurado, o governo brasileiro disse que a exportação do produto ocorreu dentro das normas vigentes. O governo da Venezuela não se manifestou.
A empresa ou as empresas responsáveis pela venda não foram identificadas. A BBC News Brasil questionou o Exército sobre o assunto, mas o órgão informou que não poderia divulgar o nome da companhia que vendeu o produto à Venezuela. Da mesma forma, não há informações sobre se a compra foi feita por empresas privadas da Venezuela ou pelo governo do país.
Entidades que atuam na defesa dos direitos humanos e especialistas em Relações Internacionais ouvidos pela BBC News Brasil, no entanto, criticaram a venda desse tipo de artefato para a Venezuela.
"É claramente equivocada a decisão de exportar materiais, mesmo que não letais, para um país que sofreu uma virada autoritária significativa nos últimos anos e que tem um histórico de repressão violenta contra direitos políticos da população", disse à BBC News Brasil o consultor sênior do Instituto Sou da Paz Bruno Langeani.
Essas entidades também chamam atenção para o fato de que a compra desses artefatos ter ocorrido nos meses que antecederam a eleição de 28 de julho deste ano, cujo resultado não foi reconhecido por diversos países, inclusive o Brasil.
Como foi a venda dos sprays de pimenta Os dados sobre a exportação do spray de pimenta do Brasil à Venezuela foram obtidos pela BBC News Brasil junto ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC). A base de dados da pasta dá a dimensão da compra venezuelana. Os 20 mil frascos importados pela Venezuela fizeram do país o maior comprador do produto em 2024. Em segundo lugar ficou o Chile, com 4 mil.
A compra feita pela Venezuela em 2024 é maior que os 9,1 mil somados de todas as compras feitas por outros países. De acordo com os dados obtidos pela BBC News Brasil, os frascos saíram de São Paulo até Roraima e de lá foram enviados à Venezuela. O produto foi remetido ao país vizinho em duas cargas nos meses de junho e de julho. As eleições presidenciais na Venezuela foram realizadas no dia 28 de julho e o resultado divulgado no dia 29 de julho.
Por se tratar de um material classificado como produto de defesa, o trâmite para a sua exportação é diferente das demais mercadorias fabricadas ou exportadas pelo Brasil. Em geral, empresas de defesa precisam de uma autorização do governo brasileiro para dar início às negociações e, ao fim delas, realizar a exportação.
Na maior parte dos casos, esse processo envolve o Ministério das Relações Exteriores (MRE), o Ministério da Defesa e o Exército. "A ideia é que o governo tenha o controle sobre quais países terão acesso a produtos sensíveis", diz David Magalhães, professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
"O objetivo é evitar que a exportação de armas e produtos de defesa possa ir na contramão da política externa do país. Por isso que, em geral, há uma análise do risco político feito pelo Itamaraty." No caso de produtos considerados não letais, como os frascos de spray de pimenta, esse processo é regulamentado por uma portaria de dezembro de 2022 que estabelece que esse controle é feito apenas pelo Ministério da Defesa e o Exército.
O spray de pimenta é um dos produtos mais utilizados pelas forças de segurança de todo o mundo para conter protestos. Quando aplicado na pele, pode causar vermelhidão e inchaço no rosto. Nos olhos, pode causar lacrimejamento intenso e cegueira temporária por até 30 minutos. A exposição contínua pode alterar a sensibilidade da córnea. Nas mucosas do nariz e da boca, a intensidade e a duração dos efeitos dependem da área atingida e do tempo de exposição.
Exportação em meio a estremecimento diplomático A exportação do spray de pimenta para o regime de Maduro aconteceu em um momento de inflexão da política externa brasileira em relação à Venezuela.
Para o professor David Magalhães, a exportação dos milhares de frascos de spray de pimenta à Venezuela no momento em que o governo brasileiro vinha fazendo manifestações críticas em relação ao governo Maduro seriam uma amostra de como a exportação de produtos de defesa no Brasil nem sempre atende à agenda de política externa do país.
"O que minhas pesquisas mostram é que definitivamente não existe alinhamento da política de exportação de armas com a política externa do Brasil", diz Magalhães. "O Brasil, por exemplo, já vendeu aviões Super Tucanos à Colômbia que depois foram usados contra as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), alinhadas à esquerda."
Magalhães explica que a força da indústria de Defesa no Brasil acabaria se sobrepondo às agendas políticas do governo. "A indústria de Defesa precisa exportar por contingências econômicas, uma vez que o governo brasileiro não consegue, sozinho, dar conta da oferta", diz o professor.
"O que temos visto é uma postura um pouco mais relaxada dos órgãos responsáveis por dar a anuência a estas vendas." Procurado pela reportagem, o governo Lula informou que não exporta spray de pimenta, atribuindo essa prática exclusivamente a empresas privadas e reiterando que as exportações seguiram as normas aplicáveis.
"A exportação para a Venezuela e para os demais dez países que constam nas estatísticas oficiais [...] são realizadas por empresas privadas", disse o Planalto em nota. O Ministério da Defesa informou que "a exportação dos produtos foi autorizada e atendeu à regulamentação vigente para a venda de produtos de defesa ao exterior".
Já o Exército disse que sua competência envolve apenas "a verificação documental sobre o processo em tela, seguindo a legislação em vigor, não cabendo qualquer ilação acerca de outros assuntos". Com BBC News Brasil