21/07/2023 às 07h45min - Atualizada em 21/07/2023 às 07h45min

A crise no território Yanomami em Roraima, 6 meses após a missão oficial.

Visita de Luiz Inácio Lula da Silva a terra indígena em Roraima em janeiro marcou início de ações do governo contra garimpo ilegal. O ‘Nexo’ recupera o que mudou e quais problemas continuam.

- Fonte: Nexo

Completaram-se seis meses nesta quinta-feira (20) desde que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva visitou a terra indígena Yanomami em decorrência de uma crise humanitária agravada pela invasão do garimpo ilegal. O Ministério da Saúde declarou emergência de saúde na área na mesma data. O caso teve repercussão dentro e fora do país.

Diferentes órgãos do governo empregaram recursos nesse período para expulsar os garimpeiros da região. Outro foco das ações foi combater problemas de saúde que atingiam os indígenas, como a desnutrição e a malária. Apesar dos resultados positivos de algumas dessas medidas, ainda há relatos de violência e vulnerabilidade social no território. 20 mil garimpeiros ocupavam a terra indígena Yanomami nos últimos anos, segundo lideranças locais

Neste texto, o Nexo explica qual a situação dos Yanomami seis meses após o auge da crise que atinge o povo indígena, a partir de quatro pontos de vista: garimpo, violência, saúde e meio ambiente. Mostra também, a partir de avaliações da sociedade civil, o que é preciso fazer para resolver os problemas que permanecem.

Garimpo
Mais de 80% dos garimpeiros que estavam na terra Yanomami saíram de lá desde o início das operações contra a atividade, segundo Sônia Guajajara. A ministra dos Povos Indígenas deu entrevista sobre o tema no dia 10 de julho para o site Repórter Brasil. Parte dos invasores deixou a terra indígena livremente, enquanto outra foi expulsa por agentes federais. 0 foi a quantidade de alertas de garimpo na terra indígena em junho, segundo Guajajara

A intervenção do governo na terra indígena começou nos primeiros dias de fevereiro. Órgãos como o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), a Polícia Federal, a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), a Força Nacional e as Forças Armadas assumiram a expulsão do garimpo. As operações também destruíram maquinários usados na atividade e bloquearam rotas que abastecem e escoam a produção.

Restam no território os garimpeiros mais perigosos, ligados ao narcotráfico, segundo informações das lideranças locais. O grupo resiste a sair e provoca conflitos na região. Em entrevista ao Repórter Brasil, Guajajara disse que o Exército iniciou ações de combate e repressão na área, o que pode remover o resto dos invasores até o fim do ano.

Para Marcelo Moura, antropólogo do Museu Nacional da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) que trabalha próximo dos Yanomami, ainda há muitos focos de presença dos invasores. “Ainda que o cerco policial tenha se intensificado, os garimpeiros seguem atuando. Alguns se escondem mata adentro e trabalham à noite para evitar serem encontrados; outros não têm medo de represálias”, afirmou ao Nexo.

Violência
Apesar da remoção da maioria dos invasores, casos de violência ainda ocorrem na terra Yanomami. Em maio, 14 mortes violentas de indígenas e garimpeiros foram identificadas em apenas uma semana na região. Outro episódio, mais recente, envolveu uma criança de 7 anos, assassinada no começo de julho após conflitos com armas de fogo.

Os casos são atribuídos à presença da minoria violenta de garimpeiros citada pelo governo e por lideranças indígenas. As operações federais contra a atividade têm levado ao aumento da tensão entre invasores e Yanomamis, o que tende a resultar em violência. Episódios parecidos aconteceram em 1992, quando o governo também expulsou o garimpo da região.

Também há ataques aos agentes federais. Ao menos cinco ações de garimpeiros contra funcionários do Ibama e da Polícia Rodoviária Federal foram identificadas nos últimos meses. Em um dos casos, em fevereiro, os fiscais revidaram e um dos invasores foi baleado. Em outro, em maio, quatro morreram durante uma troca de tiros.

A presença do crime organizado é conhecida na terra indígena. Segundo relatório de 2022 da Hutukara Associação Yanomami e do ISA (Instituto Socioambiental), integrantes do PCC (Primeiro Comando da Capital), vêm assumindo desde 2019 o comando de atividades da exploração de ouro no território. O fenômeno é conhecido como narcogarimpo.

Saúde
O Ministério da Saúde declarou emergência de saúde pública em janeiro depois de ter encontrado indígenas com malária, desnutrição severa e infecção respiratória aguda na terra Yanomami. Mais de 1.000 pessoas doentes foram resgatadas e atendidas nos primeiros dias de ações. Houve contratações de profissionais de saúde e a instalação de um hospital de campanha em Boa Vista (RR).

Dados do informe mais recente do Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública, criado para coordenar as medidas contra a crise sanitária, mostram a dimensão das ações. Mais de 760 profissionais de saúde prestaram atendimento aos indígenas até o dia 7 de julho. Houve 733 operações de resgate aéreo de pacientes, mais 188 feitas por militares. Mais de 11 mil kg de alimentos foram distribuídos no território.

3.130.376 medicamentos e outros insumos foram enviados ao DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) Yanomami, que cobre o território, até o dia 7 de julho de 2023, segundo dados do Ministério da Saúde

Apesar disso, a situação na região ainda é crítica. “Há diversos postos de atendimento que seguem fechados por falta de estrutura, de insumos, pessoal e segurança para os trabalhadores e indígenas”, disse Moura. “O DSEI-Yanomami ainda enfrenta grandes problemas de gestão e administração, com dificuldades em realizar a compra de medicamentos, contratar aeronaves para fazer o transporte de pacientes e insumos e incorporar novos profissionais.”

12.252 é a quantidade de casos de malária registrados na TI Yanomami em 2023, segundo dados do Ministério da Saúde até o dia 7 de julho; em 2022, volume foi de 15.561

4.535 é a quantidade de notificações de doenças diarreicas agudas (que podem ser associadas à desnutrição) registradas na TI em 2023, segundo dados da pasta até o dia 7 de julho; em 2022, foram 5.902

154 mortes (por diferentes razões) foram registradas na terra indígena em 2023 até o dia 7 de julho

Documento inédito da organização indigenista Survival obtido pelo Nexo também critica a concentração das ações em saúde. Regiões como Surucucu, considerada referência dentro do território Yanomami, recebem a maior parte dos atendimentos. “É essencial que o âmbito da resposta de emergência sanitária seja alargado e inclua comunidades remotas que muitas vezes se encontram a vários dias a pé dos principais postos de saúde”, diz o texto.

Outro gargalo é a segurança alimentar. Apesar de o governo ter distribuído cestas básicas, “grande parte da comida tem pouco valor nutricional e alguns, como a carne seca, são considerados intragáveis por muitos Yanomami”, segundo a Survival. Reportagem da Agência Pública de junho mostrou que ainda há problemas nas entregas: vários sacos de alimentos estão estocados com as Forças Armadas, que dizem não ter recursos para fazer o trabalho de distribuição.

Meio ambiente
Com a saída da maioria dos garimpeiros, o desmatamento associado à atividade caiu 95% na terra Yanomami em abril de 2023 em comparação com o mesmo mês no ano anterior. Os dados são de uma plataforma coordenada pela Polícia Federal que funciona com base em sistemas de alertas a partir de imagens de satélites. O ministro Flávio Dino, da Justiça e Segurança Pública, divulgou a informação em maio.

A queda na atividade também mostrou sinais positivos nos rios do território. Imagens de satélites da PF e das Forças Armadas mostram que a água do Uraricoera está mais escura que no início do ano. A cor marrom-barro predominante na época estava associada ao garimpo, que perfura os fundos dos rios e os deixa lamacentos.

Os danos causados pelo garimpo, no entanto, são profundos. Monitoramento da Associação Hutukara Yanomami mostrou que houve crescimento de 309% no desmatamento associado à atividade entre outubro de 2018 e dezembro de 2022. Para a Survival, as margens de rios afetados devem levar anos para se recuperar.

59% dos rios habitados na terra indígena Yanomami apresentam fortes indícios de contaminação por mercúrio, segundo levantamento liderado por Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) em parceria com a InfoAmazonia

O que falta fazer
Para Moura, um dos motivos que explicam os problemas que continuam na terra Yanomami é a dificuldade de integração entre os órgãos do governo. “A lentidão da burocracia do Estado e as manobras para ajustar a correlação de forças políticas seguem atrasando a ajuda que os Yanomami precisam”, disse. Uma das instituições que critica são as Forças Armadas, que, segundo ele, tiveram papel tímido nas operações até agora.

Para resolver esses problemas, o antropólogo defende uma ação permanente do Estado na região. Apenas isso deve erradicar o garimpo. “Não se trata apenas de retirar os invasores que ainda insistem em destruir a floresta e a vida indígena, mas de criar um verdadeiro sistema de proteção territorial que impeça o retorno dos criminosos”, afirmou.

Também é importante pensar em ações de longo prazo na saúde. Segundo o documento da Survival, a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena, vinculada ao Ministério da Saúde) deve construir mais postos de saúde na terra Yanomami e empregar médicos e enfermeiros que possam trabalhar ali por longos períodos. Outra recomendação é o treinamento de agentes de saúde indígenas.

Fora da terra Yanomami, é preciso adotar medidas que inibam o garimpo ilegal no Brasil, segundo a organização. Em junho, Lula enviou ao Congresso Nacional um projeto de lei que busca alterar a legislação relativa ao comércio de ouro, endurecendo regras de compra e venda e melhorando o rastreamento. O texto está na Câmara dos Deputados.

Junto com a aprovação do projeto, a Survival defende o julgamento de invasores e outros envolvidos no comércio ilegal de ouro.

 
“Até que todos os garimpeiros e grupos criminosos sejam retirados e julgados na Justiça, as comunidades Yanomami nas zonas de garimpo não poderão viver em paz nem retomar sua subsistência. Se não conseguem se alimentar, sofrem de desnutrição aguda, o que significa que também são menos capazes de resistir ou se recuperar de doenças graves como a malária.”

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