Classificada como uma organização terrorista pelos Estados Unidos e em expansão na Região Norte, a facção criminosa venezuelana Tren de Aragua exerce forte influência em abrigos que acolhem imigrantes em Roraima, de acordo com investigações. Um relatório da Polícia Civil obtido pelo GLOBO revela que o grupo administra o tráfico de drogas nesses locais e chega a "intimidar" militares do Exército que atuam na Operação Acolhida. Além disso, os investigadores localizaram nas proximidades de abrigos de Boa Vista o corpo de duas vítimas da facção.
Uma delas estava perto do centro de acolhimento Rondon 3, um dos maiores de Roraima, e apresentava sinais de tortura: estava com as mãos e os pés amarrados e tinha um corte profundo no pescoço e várias perfurações pelo corpo, o que evidenciava uma "tentativa de esquartejamento", segundo a perícia. Esta prática é uma das marcas registradas do grupo criminoso, que se estruturou a partir do presídio de Tocorón, a 140 quilômetros de Caracas, e daí se expandiu por países como Chile, Peru, Colômbia, Equador, Brasil e Estados Unidos.
A quadrilha se aproveita da situação de vulnerabilidade de alguns imigrantes para recrutá-los para o tráfico de drogas e esquemas de prostituição e extorsão. Como O GLOBO mostrou, brasileiros têm sido cooptados para atuar em rotas de tráfico, pontos de prostituição e em áreas de garimpo ilegal.
No fim de 2021, um grupo de militares acudiu um homem que estava sendo espancado por membros da quadrilha. Ao reportar o caso à polícia, um dos militares pediu para não ser identificado como testemunha por "temer represálias". "Um fato que cabe destaque na atuação deste bando criminoso, é relacionado à capacidade intimidatória que eles têm, impondo o medo até em militares do Exército Brasileiro", afirma o documento da Delegacia de Repressão a Ações Criminosas Organizadas. O texto acrescenta:
"Fica cristalino o poder intimidatório deste grupo criminoso, fato este que embaraça e dificulta a investigação, pois as pessoas venezuelanas que poderiam testemunhar os fatos não o fazem por temer por suas vidas, os que resolvem colaborar já sabem o risco que correm. Este é o atual cenário imposto por este bando criminoso em solo brasileiro".
Procurado, o Exército não se manifestou.
'Patrón, foi feito'
O clima de medo entre os imigrantes refugiados é relatado em mensagens e depoimentos prestados à polícia. Um criminoso preso por homicídio contou à polícia ter ouvido um dos sicários ligar para o chefe logo depois de uma execução ocorrida em 2021 e falar: "Patrón, foi feito".
Depois, ele expressou ao parceiro a preocupação de serem pegos, ao que o outro lhe respondeu para "ficar tranquilo que não iria dar em nada porque (o morto) era venezuelano". A maioria das vítimas do grupo são de origem do país vizinho. Um cemitério clandestino foi encontrado em Boa Vista com dez corpos no último mês — três deles já foram identificados como venezuelanos. Os investigadores trabalham com a hipótese de que se tratava de um local de desova de inimigos do Tren de Aragua.
A presença de sicários em cidades de Roraima chamou a atenção da Polícia Civil.
— Isso não era comum antes. E o pior no Brasil eles são considerados como réus primários, mesmo tendo cometidos inúmeros crimes na Venezuela. Eles chegam aqui com nomes falsos ou sem nenhum documento — afirmou o delegado Wesley Costa, titular da Delegacia de Repressão a Ações Criminosas Organizadas (Draco) de Roraima.
Segundo ele, não há nenhuma troca de informação sobre criminosos entre as autoridades brasileiras e venezuelanas.
Em agosto de 2021, uma investigação policial se iniciou depois que dois sicários venezuelanos entraram em confronto em uma barbearia de Boa Vista (RR), em plena luz do dia. Um integrante da facção Tren de Guayana identificado como Rodriguez abordou um matador de aluguel do Tren de Aragua conhecido como Escorpion — os dois bandos estão em guerra na Venezuela e trouxeram a rivalidade para o Brasil. Enquanto o revólver .380 de Rodriguez falhou num primeiro momento, Escorpion sacou uma pistola 9 mm e a descarregou em cima do rival. Os dois ficaram gravemente feridos, mas sobreviveram e acabaram presos pela polícia.
"A empreitada criminosa se deu no contexto de disputa entre facções criminosas pela hegemonia na comercialização de entorpecentes e delimitação de território", escreveu o Ministério Público de Roraima em denúncia contra os dois por associação criminosa, homicídio e porte ilegal de arma, em 2022.
Em setembro do mesmo, um outro venezuelano chamado Jesus Romero, de 25 anos, apareceu morto vítima de disparos de arma de fogo. Alguns dias antes, ele havia enviado áudios a familiares — recuperados pelos investigadores —, relatando que queria sair logo de Roraima, porque "aqui todos estão se matando".
"O que acontece é que eu conheço a todos aqui, e o problema é que todos antes andavam juntos, eram amigos, até que se enfezaram um contra o outro. É gente de El Tigre, Ciudad Bolivar e San Félix que vêm para cá, e trazem seus problemas e se matam. Por isso quero conseguir uma passagem para ver se vou de avião para Florianópolis", diz ele, no áudio transcrito pela polícia, citando três cidades venezuelanas.