Para Davi Kopenawa (foto acima), xamã e líder político do povo yanomami, a aprovação do marco temporal —uma "cobra grande"— abrirá as terras indígenas para garimpeiros e invasores que hoje agem escondidos. Líder da mobilização que levou à demarcação da Terra Indígena Yanomami, em 1992, Kopenawa se diz desesperançoso diante da falta de proteção da terra. "Já esperei, assim, 20 anos... Nunca se conseguiu. O estrago só está crescendo."
Segundo ele, as operações do governo federal para expulsar garimpeiros precisam de apoio do Exército, especialmente nas fronteiras. "Mas os militares não estão ajudando, porque eles estão a favor do garimpeiro trabalhar escondido", avalia
openawa passou por São Paulo no último final de semana para o lançamento do documentário "Escute: a Terra Foi Rasgada", na 12ª Mostra Ecofalante, e também para autografar seu novo livro, "Espírito da Floresta" (Companhia das Letras). A obra repete a parceria com o etnólogo Bruce Albert, com quem escreveu "A Queda do Céu", em 2010. Com grande impacto sobre o pensamento ecológico, o livro conta como os xamãs "seguram o céu", impedindo a catástrofe ambiental.
Kopenawa participaria da Feira do Livro, em São Paulo, nesta semana, mas cancelou sua presença em razão do luto pela morte de sua ex-nora. Nesta entrevista à Folha, concedida em um hotel em São Paulo, Davi diz que os livros são avisos contra as ameaças à terra, as quais ele se recusa a nomear de "mudança climática". "Para mim, a mudança é vingança da terra".
Como o sr. avalia a votação sobre o marco temporal na Câmara dos Deputados? E o que espera do julgamento no Supremo Tribunal Federal? [O STF] tem que votar contra. Estão desrespeitando o que está escrito na Constituição Federal. Não é hora de marco temporal sair como cobra grande para acabar com a gente. Os garimpeiros estão doidos para o Congresso Nacional aprovar essa lei do marco temporal, para eles continuarem a garimpar e botar máquina em terra indígena. Não participei [da tramitação do PL 490], mas estou sabendo: o marco tempo significa continuar a roubar a terra.
O que nós ainda não entendemos sobre a proteção das terras? A terra não vai crescer de volta. A máquina vai rasgando a pele da terra, ela fica ferida, não consegue voltar a nascer por conta própria. Estão achando que a máquina vai rasgar a pele da terra, acabar com a água, depois vai recuperar, ficar bom de novo? Eu nunca vi. Nunca. Assim como a leishmaniose entra no corpo da gente e, se não cuidar, mata uma pessoa. Mas, se cuidar antes de entrar, ficar limpando, ela sara. A terra também. Tirando o garimpeiro no começo, ela consegue [se recuperar]. Mas a máquina entrou na terra indígena um ano, dois, três, quatro, cinco anos trabalhando. E está tudo estragado.
Após as ações do governo federal de expulsão de garimpeiros da TI Yanomami nos últimos meses, qual a situação hoje no território? Conseguiram tirar, mas não tudo. Ainda tem garimpeiros escondidos. Se entrar na Venezuela, estão escondidos lá, no alto rio Orinoco. Lula é positivo para nós, mas não consegue trabalhar sozinho. Estão tentando aumentar o grupo da Polícia Federal, do Ibama e da Funai, mas precisa de um apoio forte. Se o Exército trabalhar junto com o presidente Lula nas fronteiras, eles tirariam tudo. Mas os militares não estão ajudando, porque eles estão a favor do garimpeiro trabalhar escondido.
Qual sua avaliação sobre o esvaziamento das funções do recém-criado MPI (Ministério dos Povos Indígenas)? Penso que a força da natureza mandou um sonho para o presidente Lula quando ele estava na cadeia. Ninguém pediu para Lula [a criação do MPI], ele que pensou em nós. Pensou assim: vou obedecer ao sonho da natureza e deixar o povo indígena cuidar da sua saúde, do seu território, porque nós, povo da cidade, só estamos conseguindo estragar tudo. E nós aceitamos. Vamos experimentar. Não estávamos preparados. Eu não queria ser ministro, porque não tenho estudo completo —se tivesse, gostaria de assumir como ministro da Saúde. Mas a doutora Joenia [Wapichana, presidente da Funai] ficou quatro anos como deputada, ela conhece todos os caminhos da política. Então vamos aprender a fazer funcionar nossos ministros: da Saúde, da Justiça, da Funai, junto com Lula.
Os desastres climáticos estão aumentando e os cientistas do clima apontam uma janela pequena de ação para evitar uma catástrofe. Ainda temos tempo? Não. Eu não estou esperando. Esperança é hoje e amanhã. Não estou vendo melhorar. Já esperei, assim, 20 anos... Nunca se conseguiu. O estrago só está crescendo. Envenenaram nossas águas. Aqui de onde você bebe, das montanhas, ainda está protegido, um pouquinho, mas ali onde passa o rio não está. Por isso, não vou dizer que tenho esperança de melhorar a saúde da nossa terra, da floresta, da cidade. Estamos todos poluídos, contaminados. Eu não estudo com a ciência, eu estudo com meu xapiri.
Quem são os xapiris? Xapiri é um curador da floresta, da terra, da água, da nossa moradia. Curador do tempo bonito. Quando está chovendo muito, o xapiri trabalha, fala "hoje não precisa chover", e [a chuva] vai para outro lugar. O xapiri não é importante para o yanomami só, é para todos. Xapiri não gosta da poluição. Ele fala outra língua.
Como se estuda a terra com os xapiris? Eu sou pajé. Grandes chefes das aldeias me ensinaram a olhar onde a terra está precisando ser protegida e respeitada. Eu tenho estudo. Mas a sociedade civil e o governo só querem pensar de forma capitalista. Só querem pensar em mercadoria: madeira, diamante, cassiterita, ouro. Mas não pensam em melhorar a saúde em nossa Terra-planeta. Não só para meu povo, para nós tudo. Estou revoltado, como minha mãe-Terra está revoltada, fiquei revoltado junto. Não vou falar em mudança climática. Para mim, a mudança é a vingança da terra.
A vingança da terra é a queda do céu? Sim. Não estão escutando, não estão acreditando. [O livro] "A Queda do Céu",[o filme] "A Última Floresta" e [o livro] "Espírito da Floresta" são mensagens, avisos, para parar de ameaçar a terra.
Os sonhos avisam sobre a vingança da terra? Sim. O sonho avisa sobre a maldade. Quando o perigo está chegando na aldeia, o pajé sonha. Só o pajé sabe. O sonho bom também é muito importante, diz quando o alimento está chegando, os frutos. Por isso, a gente fica com ciúmes quando branco chega na floresta e derruba tudo. Porque a árvore é como a gente. A gente se alimenta para proteger a saúde. Não é o remédio que protege. Ingá, caju do mato, cacau do mato, mel de abelha do mato. Essa é a nossa riqueza, com o que sonhamos. A beleza para vocês da cidade, o aviso bom, é salário bom chegando, um aumento bom. O sonho fala para todo mundo. Não é só índio que sonha. A floresta amazônica é nossa. É de vocês. Se não tiver indígena cuidando, morando no meio da floresta, o povo destruidor acaba com tudo. Precisa tirar os olhos da terra para olhar o universo. Tirar os óculos escuros, pretos, para ver o que estamos dizendo. É assim que eu aprendi. Tem que sofrer para poder aprender, para poder conhecer outro mundo. É assim que meus pais, tios, sogros, meus grandes xapiris me ensinaram. Eles já morreram. Mas eu estou aqui no lugar deles.
RAIO-X Davi Kopenawa, 67
Xamã e líder político do povo yanomami, nasceu na vila yanomami de Marakana, próximo à fronteira do estado de Roraima com a Venezuela. Ainda na adolescência, tornou-se intérprete da Funai. A partir de 1987, liderou mobilizações no Brasil e no mundo contra a invasão garimpeira na terra Yanomami, demarcada em 1992. Foi reconhecido pelos prêmios Global 500 da ONU, em 1988, e a Ordem de Rio Branco, do governo brasileiro, em 1999. Em 2020, foi eleito para a Academia Brasileira de Ciências.